quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS E O § 3º DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Introdução
O dispositivo em questão foi introduzido pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004, que pôs em vigor a reforma do Poder Judiciário, suscitando desde logo viva controvérsia em doutrina. O objetivo deste trabalho será então analisar os mecanismos de recepção dos tratados internacionais de direitos humanos na ordem jurídica nacional brasileira, assim como sua hierarquia constitucional, notadamente à luz do § 3º do art. 5º da Constituição Federal. Será considerado especialmente o contexto normativo interno da Câmara dos Deputados, procurando identificar quais as implicações da citada inovação constitucional para o processo legislativo nesta Casa.
A polêmica acerca da recepção e hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos
Desde a promulgação da Constituição de 1988, parte significativa da doutrina sustenta a hierarquia constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos, que seriam incorporados como tal automaticamente ao ordenamento jurídico interno brasileiro. Essa posição fundamenta-se na interpretação de dois dispositivos do art. 5º da Constituição: o § 1º, que dá aplicabilidade imediata às normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, e o § 2º, que dispõe que “os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
A principal defensora dessa corrente é a prof. Flávia Piovesan, da Faculdade de Direito da PUC de São Paulo, para quem “todos os tratados de direitos humanos, independente do quorum de aprovação, são materialmente constitucionais, compondo o bloco de constitucionalidade”, por força do art. 5º, § 2º da Constituição Federal. A todos esses, a autora reconhece status de norma constitucional, constituindo portanto cláusulas pétreas insuscetíveis de modificação ou abolição por emenda à Constituição, conforme dispõe seu art. 60, § 4º, IV. Nos termos do art. 5º, § 1º, os tratados internacionais de direitos humanos incorporam-se automaticamente à ordem jurídica interna brasileira, “sem que se faça necessário um ato jurídico complementar para sua exigibilidade e implementação”. No caso de ratificação de um tratado de direitos humanos cujas disposições contrariem a Constituição Federal, prevaleceria a norma mais benéfica à proteção da vítima, em observância a consagrado princípio de direito internacional.
O advento do § 3º do art. 5º, prossegue a autora, apenas criou uma distinção entre tratados internacionais de direitos humanos “materialmente constitucionais”, recepcionados automaticamente como norma constitucional, e “formalmente e materialmente constitucionais”, votados como Emenda à Constituição pelo Congresso Nacional. A distinção prática entre os dois consistiria no fato de que os primeiros poderiam ser denunciados pelo Presidente da República, enquanto os segundos não seriam passíveis de denúncia por integrarem formalmente o texto da Constituição de 1988. Ambos, entretanto, integrariam o bloco de constitucionalidade e estariam, como tal, imunes à revogação ou emendamento, constituindo cláusula pétrea na ordem interna.
Essa orientação doutrinária, entretanto, foi recusada pelo Supremo Tribunal Federal, que afirmou a hierarquia infraconstitucional dos tratados internacionais de direitos humanos e sua completa sujeição à Constituição Federal. O leading case na matéria é o RHC 79.785-RJ, onde o Tribunal decidiu pela “prevalência da Constituição, no Direito brasileiro, sobre quaisquer convenções internacionais, incluídas as de proteção aos direitos humanos”. Outrossim, o Tribunal entendeu que os “tratados ou convenções internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias”.
Merece aqui destaque a manifestação do Ministro Celso de Mello no HC 81.319-GO: “revela-se altamente desejável (...), "de jure constituendo", que, à semelhança do que se registra no direito constitucional comparado (Constituições da Argentina, do Paraguai, da Federação Russa, do Reino dos Países Baixos e do Peru, v.g.), o Congresso Nacional venha a outorgar hierarquia constitucional aos tratados sobre direitos humanos celebrados pelo Estado brasileiro”.
A outorga desse desejável status constitucional veio com a reforma do Poder Judiciário, por intermédio da relatora, Deputada Zulaiê Cobra. Seu parecer registra que o § 3º do art. 5º foi introduzido no texto constitucional por sugestão exatamente do Ministro Celso de Mello, por inspiração da Constituição da Argentina, com a finalidade expressa de pôr fim à controvérsia que grassava na doutrina de então.
Assim procedendo, o Congresso Nacional explicitou a hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos na ordem jurídica brasileira, atentando para a necessidade de respeitar-se a integridade do processo de reforma da Constituição Federal. Este, vale lembrar, constitui limitação material implícita ao Poder Constituinte derivado, que está impedido de alterar o rito e as condições de modificação do texto constitucional, sob pena de elevar-se à altura do Poder Constituinte originário, rendendo inúteis as limitações ditas explícitas – o art. 60 da Constituição de 1988. Houve, portanto, uma clara opção do legislador constituinte derivado pela preservação da rigidez da Constituição, em consonância com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e em rejeição à tese doutrinária da hierarquia constitucional e incorporação automática desses tratados.
O § 3º do art. 5º e a avaliação da doutrina
Posto em vigor, o § 3º do art. 5º suscitou de imediato inúmeras críticas doutrinárias. Caio Gracco Pinheiro Dias, ante a concisão do novo texto, aponta que este não permite saber a quem caberá decidir “se o tratado apresentado ao Congresso versa ou não sobre direitos humanos”, ou sobre “o rito que o procedimento de aprovação pelo Congresso deverá seguir”(grifei). Ou, ainda, qual a conseqüência para o “tratado sobre direitos humanos que não chegue a ser aprovado por maioria de 3/5 em dois turnos, mas ainda assim obtenha mais de 50% de aprovação”, ou se o novo dispositivo constitucional teria aplicação retroativa, atingindo tratados já ratificados pelo País.
No que se refere ao rito, a primeira indagação diz respeito à iniciativa para apresentar ao Congresso Nacional o texto do tratado sobre direitos humanos a que se pretende conferir força de emenda constitucional. Nos termos do art. 60 da CF e seus incisos, “A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II - do Presidente da República; III - de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.”
Até a presente data, não há norma regulamentar (regimental) que discipline a apresentação ou a tramitação dos tratados sobre direitos humanos a luz do § 3° do art. 5° da CF. O referido dispositivo é omisso quanto à questão da iniciativa, mas seria possível inferir-se que a futura norma não poderá afastar-se das formalidades exigidas para a apresentação de qualquer proposta de emenda à constituição.
Outrossim, não é possível inferir qual efeito que se deve dar, na ordem interna, a tratados aprovados pelo Congresso segundo o art. 5º, § 3º, da Constituição, mas que não estejam em vigor na ordem internacional – seja porque não foram ainda ratificados pelo Presidente da República, seja porque são condicionais ou a termo, estabelecendo um número mínimo de ratificações para sua entrada em vigor no plano externo. A esse respeito, Valério de Oliveira Mazzuoli observa que “não se concebe (por absurda que é esta hipótese) que algo que sequer existe juridicamente (e que pode levar anos para vir a existir) já tenha valor interno em nosso ordenamento jurídico, inclusive com poder de reformar a Constituição”.
Essas ponderações permitem reconhecer o § 3º do art. 5º como norma constitucional de eficácia limitada, cujo texto, na definição de José Afonso da Silva, depende de outras providências normativas para que possa surtir os efeitos essenciais colimados pelo legislador constituinte. Em outros termos, será necessária a expedição da regulamentação pertinente para que o texto em questão produza seus efeitos.
A Câmara dos Deputados e os tratados internacionais de direitos humanos
No sistema da Constituição de 1988, cabe à União manter relações com Estados estrangeiros e participar de organismos internacionais (art. 21, I), sendo os tratados internacionais concluídos mediante a colaboração dos Poderes Executivo e Legislativo. É competência privativa do Presidente da República celebrá-los (art. 84, VIII), submetendo-os ao referendo do Congresso Nacional, que se manifestará na via do decreto legislativo (art. 49, I). Uma vez aprovado pelo Congresso, o tratado é posto em vigor na ordem interna por decreto do Presidente da República.
O tratado assinado por Plenipotenciário nomeado pelo Presidente da República é encaminhado ao Congresso Nacional por meio de Mensagem presidencial. Na Câmara dos Deputados, essa Mensagem e o respectivo tratado são distribuídos, primeiramente, à Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, em seguida, às demais comissões temáticas e, por último, à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Após tramitar por todas essas comissões, o texto vai à apreciação do Plenário.
Ao analisar o texto do tratado, caso entenda conveniente aprová-lo, a Comissão de Relações Exteriores apresentará um projeto de decreto legislativo com tal finalidade.
Conforme destacou-se anteriormente, não há norma regimental que disponha especificamente sobre a tramitação dos tratados internacionais de direitos humanos. A proposição que visa a regular a matéria na Casa é o PRC nº 204, de 2005, do Deputado Fernando Coruja, que aguarda apreciação pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.
O projeto elaborado, evidenciando o cuidado de respeitar o processo de emenda constitucional previsto no art. 60 da Constituição Federal, assim como de responder às indagações já lançadas pela doutrina sobre a matéria.
Seu texto possibilita imprimir eficácia de emenda constitucional a tratados de direitos humanos já em vigor, pondo fim à polêmica doutrinária sobre a eficácia desses instrumentos na ordem interna – se seriam ou não incorporados ao rol de direitos fundamentais da Constituição, por força do seu art. 5º, § 2º. O projeto incorpora a posição do Supremo Tribunal Federal, que já decidiu no sentido de que os tratados internacionais de direitos humanos não têm status constitucional, e deixa ao Congresso Nacional o juízo sobre quais instrumentos – já ratificados ou em celebração – poderão reformar a Constituição.
Vale destacar, entretanto, que o projeto contraria a posição adotada pela doutrina quanto ao efeito que se deve dar, na ordem interna, a tratados aprovados pelo Congresso segundo o art. 5º, § 3º, da Constituição, mas que não estejam em vigor na ordem internacional – seja porque não foram ainda ratificados pelo Presidente da República, seja porque são condicionais ou a termo, estabelecendo um número mínimo de ratificações para sua entrada em vigor no plano internacional. A esse respeito, observa que “não se concebe (por absurda que é esta hipótese) que algo que sequer existe juridicamente (e que pode levar anos para vir a existir) já tenha valor interno em nosso ordenamento jurídico, inclusive com poder de reformar a Constituição”.
A solução oferecida por Valério de Oliveira Mazzuoli seria apreciar o tratado segundo o art. 5º, § 3º, apenas “depois de ratificado o acordo e depois de o mesmo já se encontrar em vigor internacional”. Ou seja, “depois de assinados pelo Executivo, os tratados de direitos humanos seriam aprovados pelo Congresso nos termos do art. 49, inc. I, da Constituição (maioria simples) e, uma vez ratificados, promulgados e publicados no Diário Oficial da União, poderiam, mais tarde, quando o nosso Parlamento Federal decidisse por bem atribuir-lhes a equivalência de emenda constitucional, serem novamente apreciados pelo Congresso, para serem dessa vez aprovados pelo quorum qualificado do § 3º do art. 5º”.
Preocupações pertinentes:
No último dia 13 de maio, a Câmara dos Deputados discutiu e votou, na forma do disposto no § 3º do art. 5º da Constituição Federal, em primeiro turno, a Mensagem nº 711, de 2007, “que submete à consideração do Congresso Nacional o texto da Convenção sobre direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Yorque, em 30 de março de 2007. No dia 28 do mesmo mês, votou e aprovou a matéria em segundo turno.
Foi um momento inédito na história do Parlamento brasileiro, pois, pela primeira vez aquela Casa do Congresso Nacional utilizou-se do novo mecanismo constitucional para votar matéria dessa natureza(direitos humanos).
O argumento utilizado para colocar a matéria em votação, neste novo rito, porém sem um procedimento pré-estabelecido de processamento da matéria, trouxe grande polêmica, suscitando dúvidas não só no ramo do processo legislativo, mas no ramo do Direito positivado, quanto à sua validade.
Importante salientar que a matéria chegou ao Congresso Nacional, via mensagem do Executivo, onde o Ministro das Relações Exteriores Sugere ao Presidente da República que, “por se tratar de Convenção sobre direitos humanos, os textos sejam encaminhados ao Congresso Nacional com a expressa menção do interesse do Poder Executivo em vê-los incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro (g.n.) com equivalência a emenda constitucional, em consonância com o dispositivo do § 3º do Artigo 5º da constituição da República Federativa do Brasil.”
Somente esse texto foi o suficiente para que a Câmara dos deputados entendesse que o texto poderia ser votado, como foi, diretamente em plenário, ignorando-se o processo legislativo.
Quando da discussão da matéria o deputado João Almeida, diante dessa situação nova,. Manifestou-se, em questão de ordem, da seguinte forma: “Sr. Presidente – Eu quero concluir dizendo a V.Exa. que essa é uma novidade, que nós estamos tratando de uma forma atropelada. Não constituímos Comissão Especial ; vamos para uma votação aqui em dois turnos; não definimos se há interstício; não houve parecer da Comissão de constituição e Justiça; não houve parecer da Comissão de Relações Exteriores, como se faz regularmente nos acordos internacionais. É uma matéria que estamos introduzindo no plenário como uma novidade e sem regulamentação. Estamos decidindo aqui açodadamente sobre a condução da matéria. Haverá outros acordos no futuro, pretendendo a mesma condição de validade de equivalência constitucional”.
O Presidente Arlindo Chinaglia, em resposta, contra argumentou informando que, por ter sido aprovado um requerimento de urgência para a votação da matéria, os “Deputados, os Líderes manifestaram a sua concordância quanto ao mérito e a relevância”(Arlindo Chinaglia), por isto a matéria estaria livre de qualquer procedimento legislativo, podendo ser votada naquela forma. O Deputado João Almeida tentou contra-argumentar, porém, de pronto o Presidente Chinaglia não permitiu, o que levou o parlamentar a apresentar recurso à Comissão de Justiça contra a decisão do Presidente. A matéria seguiu Para a Comissão de Constituição, porém sem o efeito suspensivo. Continuou-se com o processo de votação.
Nesse diapasão, pediu a palavra o Deputado José Carlos Aleluia para uma questão de ordem. Nela questionou o fato de, numa primeira questão: se não houvesse quorum constitucional, a matéria seria considerada aprovada por maioria simples, como sempre aconteceu na votação dos tratados, ao que o Presidente Arlindo Chinaglia respondeu: “Claro”. Ato contínuo o Deputado José Carlos Aleluia: “ E enviada ao Senado?”. Isso , respondeu o Presidente.. Continuou o Deputado José Carlos Aleluia: “na hipótese de haver quorum constitucional, haverá interstício para votar o segundo turno?”. O Presidente afirma que sim, ao que continua o Deputado interlocutor indagando que se for aprovada em dois turnos será feita uma sessão conjunta para a promulgação da emenda constitucional. O Presidente responde que não é emenda constitucional.. Finalmente o Deputado Aleluia esclarece que na proposta vinda então será incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro, em equivalência à emenda constitucional, portanto “é uma emenda constitucional na forma proposta pelo Ministro das Relações Exteriores”. Respondendo a esta questão o Presidente da Câmara então avisa que quem vai decidir se a matéria vai para promulgação das duas Casas ou não, se essas condicionantes de aprovação nas duas Casas ocorrer com quorum qualificado, será o Presidente do Senado Federal. E afirmou em bom tom; “Não cabe à Presidência da Câmara dos Deputados tomar essa decisão.” Ato contínuo, informa o Deputado Aleluia: “ Voto contra a tentativa do Ministro de usar o dispositivo do § 3º do art. 5º para, no futuro, trazer convenções que não nos interessam e tentar incluí-las na Constituição. É uma prática nova. O Presidente definiu um rito novo, que, no meu entendimento, não é o mais adequado. Acho que deveria ter sido submetido à Comissão de constituição e Justiça, À Comissão de Relações Exteriores e, só posteriormente ao Plenário.”
Ainda durante a discussão o deputado Zenaldo Coutinho, na condição de Líder de bancada, fez a seguinte comunicação de Liderança: “Sr. Presidente, de maneira muito rápida, mas sem deixar de registrar aspectos que entendemos fundamentais que sejam registrados nos anais da Casa afirmo que temos evidente insegurança jurídica no momento desta votação e não podemos escamotear isso. Primeiro, o § 3º do art. 5º estabelece equivalência constitucional aos tratados e convenções que tratam sobre direitos humanos – ponto. Aí vamos ao art. 59 da CF, no qual se definem quais são os instrumentos legislativos através dos quais podemos deliberar nesta Casa, quais sejam: emenda constitucional, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas. Medidas provisórias, decretos legislativos e, por fim, as resoluções.
Ora, o que vamos votar hoje? Projeto de decreto legislativo, o penúltimo na ordem hierárquica das proposições desta Casa. Contudo, vem o § 3º do art. 5º e diz: “Tratados e convenções de direitos humanos terão equivalência constitucional”. Caberá, aí, entendermos que isso é cláusula pétrea a ser adotada por causa do art. 5º? Penso que não. Nós estamos dando equivalência constitucional de hierarquia, mas para um projeto de decreto legislativo.(grifei)”.
Em contradita o Deputado Maurício Rands afirmou:” Sugiro aos Deputados que não querem dar força normativa a esse tratado que indaguem às entidades representativas das pessoas com deficiência, ao Conselho de Pessoas com Deficiência. Há entidades, Sr. Presidente, que se não tiver força normativa de hierarquia constitucional preferem que a matéria não seja votada neste plenário.” E continua, “Este § 3º veio para pacificar controvérsia existente no supremo Tribunal Federal. Antes, apenas com o § 2º a jurisprudência no Brasil já se dividia; havia parte da jurisprudência e doutrinadores que achavam que o tratado internacional, por ser celebrado no plano internacional, já entrava no ordenamento jurídico, uma vez ratificado pelo respectivo Legislativo como norma de hierarquia constitucional.
Havia controvérsia. Se o Congresso Nacional tivesse dito que o tratado internacional na área de direitos humanos – é o que diz o §3º do art. 5º - seria internalizado no ordenamento jurídico brasileiro como norma constitucional, teria afirmado: será emenda constitucional. Em vez disso, falou: será equivalente à emenda constitucional. Quis o § 3º dizer que é uma norma de hierarquia constitucional, é o plano formal. Nós estamos no plano formal. Tanto não é emenda não tem itinerário da emenda.”
Ainda, na esfera da refutação, tomou a palavra o deputado Leonardo Picciani que afirmou: “ Minha posição não é contra a convenção. Ela se deve ao zelo que devemos ter com a Constituição Federal. Penso que se trata de fato inédito. Não resta dúvida de que o § 3º do art. 5º da constituição abriu a possibilidade de se converter um tratado internacional em norma constitucional. Então precisamos pensar nas implicações que isto tem. São 68 artigos que serão equivalentes a normas constitucionais. São hierarquicamente superiores às normas, às leis complementares, às leis ordinárias, a todas as outras modalidades legais que só têm validade jurídica se entrarem no ordenamento da forma imposta pela Constituição no que tange ao processo legislativo. Por exemplo, quando se tiver um projeto aqui e se for emitir um parecer de admissibilidade ou de constitucionalidade ao projeto, esta Casa vai ter de verificar se colide com o texto da constituição e se não está em desacordo com o texto do tratado. Um tema dessa importância tinha de ter tramitado com mais responsabilidade. Tínhamos de ter instalado a Comissão Especial, cuja criação V.Exa. (Presidente da Câmara) determinou. E essa Comissão teria de debater a fundo, olhado artigo por artigo do tratado, para ver se não ferem conceitos constitucionais consagrados, se não ferem cláusulas pétreas. A dúvida que tenho é se amanhã ou depois poderá uma emenda à Constituição posterior revogar algum artigo desse tratado ou criar uma norma constitucional que se contraponha a alguma norma contida nesse tratado. Eu tenho dúvidas. Acho que não, porque se é cláusula pétrea, nós, como constituintes derivados, não podemos mudar.”
Por fim, cabe a manifestação do Deputado ibsen Pinheiro, feita na oportunidade: “Sr. Presidente, meus colegas, é a primeira vez que venho discutir matéria nestya tribuna. No geral, meu voto é um voto dedicado e fiel à orientação da Liderança> Mas acho que isto está muito além de uma mera questão regimental. É uma questão de fundo o que está em discussão. Não se trata de aprovar ou não, de rejeitar ou não a convenção. Nisto há unanimidade. Todos somos favoráveis. Temos sérias divergências, no entanto, quanto ao rito.
Aponto a realidade regimental e constitucional de que não cabe ao Presidente da República definir a tramitação da apreciação de uma convenção neste plenário. Aliás, o próprio Ministro do Exterior foi mais modesto: sugeriu simplesmente. Vejam os senhores os efeitos da equivalência constitucional – alguns sustentam que equivalência não é igualdade, mas eu me nego a discutir o étimo da palavra, tal é a clareza de equivalência por igualdade, e, se não há equivalência o caso é ainda mais grave.
O art. 5º da Constituição está intitulado em direitos e garantias fundamentais. O art. 60, § 4º, leio:
‘Art. 60 ..............................
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
IV – os direitos e garantias individuais’
Mas do que uma equivalência, o que aqui se aprovará por três quintos de votos serão cláusulas pétreas, e que estão depositadas com o Secretário-Geral da ONU.
Leio agora o art. 41 da matéria em apreciação: ‘O Secretário-Geral das Nações Unidas será o depositário da presente convenção.’ E, caridosamente, dispõe ainda a proposta, em seu final: ‘Os textos em árabe, chinês, espanhol, francês, inglês e russo da presente convenção serão igualmente autênticos.’
Estamos então produzindo um texto supraconstitucional, porque pétreo, para aprovar matéria que, por legislação ordinária, assegura nossa participação no comitê com direitos integrais.
Permito-me dar aos colegas um exemplo: Há pouco a ONU aprovou resolução conferindo aos povos indígenas reconhecimento de seus costumes, língua, território e autonomia. Todos os países que têm populações indígenas votaram contra essa resolução, com exceção do Brasil. Canadá, Austrália e Estados Unidos votaram contrariamente, temendo aquilo que hoje se discute: o surgimento de enclaves autonômicos ou pretensamente autonômicos. Sabem o que tranqüiliza nessa resolução que aprovamos na ONU? Ela não tem força de legislação interna em nosso País. Graças a Deus! Não tem força de legislação interna em nosso país. É uma adesão brasileira a convenção internacional. Pois aprovemos a adesão brasileira à Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, mas preservemos o nosso texto constitucional, que implicou 2 anos de muito trabalho. Agora, querem enxertar com 60 ou 70 dispositivos cuja leitura nem sequer se pôde fazer”.
Ainda nessa mesma sessão, ao responder a uma questão de ordem do deputado Leonardo Picciani, o Presidente da Câmara demonstrou o verdadeiro imbróglio legislativo em que se tornou o exame da matéria.
Indagou o deputado Picciani : “ Sr. Presidente, esta mensagem vem por força do art. § 3º do art. 5º. O art. 5º é uma cláusula pétrea, trata dos direitos e garantias individuais. A pergunta que formulo a V.Exa. : uma vez virando equivalente à emenda à Constituição, a sua revogação seria possível, já que se trata de cláusula pétrea?”, ao que o Presidente Chinaglia respondeu: Isso tem que ser analisado, até porque, veja, não se tem aqui referência, pelo menos de memória, de termos vivido a mesma situação anteriormente. Então vou esclarecer a V.Exa.. Quando o Presidente da República envia uma mensagem, que, na nossa(grifo meu) interpretação, condiciona ao § 3º do art. 5º, e S.Exa. tem competência para tanto, e, como há no art. 5º § 3º, digamos, essa determinação, ainda que no Regimento Interno da Casa não haja a previsão, então estamos de fato navegando por mares nunca dantes navegados. Mas estamos, primeiro, cumprindo o que diz a Constituição; segundo, se alguma proposta não cumprir com as condicionantes,, nós daremos um outro tratamento, e, terceiro, vamos resolver.
Agora, com referência à cláusula pétrea, também cabe interpretação. Por isso, não tenho como responder com segurança à pergunta de V.Exa. e dos Senhores parlamentares, a começar pela CCJ, que V.Exa. presidiu e da qual hoje é um dos seus membros, para que nós agilizássemos o projeto do deputado Coruja (PRC 204;de 2005).
Enquanto isso não ocorrer, nós não votaremos nenhuma outra proposta de projeto de lei que diga respeito a esse § 3º do art. 5º.
Numa última manifestação o Deputado Fernando Coruja, Líder do PPS, este reclamou: “Precisamos disciplinar a forma de tramitar das matérias. Votamos na Casa assuntos de afogadilho, sem prestar atenção ao texto como um todo. Evidente que, para tramitar como equivalente da emenda constitucional, é preciso que a matéria tenha um tratamento especial na Câmara dos Deputados, porque tem influência na hierarquia. À medida que há uma matéria com equivalência constitucional, ela passa a ser hierarquicamente superior a todas as legislações complementares e ordinárias. Por exemplo, uma lei que é superior à legislação do SUS, que é infraconstitucional, passa a ser inferior a essa que estamos inserindo. Por exemplo, quero ver votado no plenário o Pacto de San José da Costa Rica, para que seja transformado em equivalente constitucional. Eu defendo que tenha equivalência constitucional. O Supremo decidiu que esse Pacto entrou no Brasil como lei ordinária. Ele trata do depositário infiel que pode ser preso. É preciso mudar isso. Entendo que ninguém pode ser preso, em nenhum local do mundo, por dívida. Isso só acontecia na antiga Grécia. Na modernidade não pode ser preso o depositário infiel. Eu acho que precisamos pôr esse Pacto aqui para ser votado com este quorum. A tramitação dessas matérias é de alta relevância. Nós temos que discutir, ou vamos mudar a Constituição no grito, a qualquer hora? Chega o que fazemos com as medidas provisórias, com o apoio de certos setores do Governo que esculhambam a constituição a toda hora.”
Por fim, após toda essa discussão a Presidência proclamou o resultado da votação: “sim” 418; “não”, zero; abstenções , 11. Total 429. Foi aprovado p Projeto de Decreto Legislativo nº 563, em primeiro turno, com força de norma constitucional.
Este foi o resultado de uma sessão tumultuada para votar um projeto que, quanto ao mérito era bastante apelativo e que, por isto, atropelou a própria Constituição Federal no que concerne ao ordenamento do processo legislativo.

Conclusão
Em face de todo o exposto, tem-se que o atual mecanismo de apreciação dos tratados e demais compromissos internacionais pelo Congresso Nacional não pode ser estendido aos tratados sobre direitos humanos, aos quais se pretenda conferir status de emenda constitucional, havendo necessidade, salvo melhor juízo, de promulgação de norma regimental específica.
Também não podem ser aplicadas ao caso as vigentes normas regimentais, que regulam a propositura e a tramitação das propostas de emenda à constituição. A título exemplificativo, cumpre notar que é possível a apresentação de emendas às PECs, nas diversas fases de sua tramitação. No entanto, no caso dos compromissos internacionais, a propositura de emendas deve ser analisada com cautela, não sendo raro a ocorrência de casos onde não há possibilidade de alterações no texto pactuado. Nesse sentido, é desaconselhável a aplicação integral das atuais regras que regem as PECs aos tratados sobre direitos humanos.
Assim, com a finalidade de dar plena eficácia ao § 3° do art. 5° da CF, julgamos conveniente conferir prioridade a uma forma de acondicioná-la ao processo legislativo.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

O DEVIDO PROCESSO LEGISLATIVO: PROMULGAÇÃO “FATIADA”

Alexandre Sankievicz
Amandino Teixeira Nunes Junior
Marcos César Santos de Vasconcelos
Newton Tavares Filho
BRASÍLIA - 2009
1 IDENTIFICAÇÃO DO PROJETO
TÍTULO: O devido processo legislativo: promulgação “fatiada” de propostas de
emendas à Constituição.
AUTORES: Alexandre Sankievicz, Amandino Teixeira Nunes Junior (Coordenador),
Marcos César Santos de Vasconcelos e Newton Tavares Filho.
INSTITUIÇÃO: Câmara dos Deputados/Centro de Formação, Treinamento e
Aperfeiçoamento (CEFOR).
LINHA DE PESQUISA: Organização e funcionamento do parlamento: gestão
pública, processo legislativo, atividade político-parlamentar, técnica legislativa e
pronunciamento parlamentar.
RESUMO: Identificar e examinar a técnica da promulgação “fatiada” de propostas de
emenda à Constituição, sua natureza, fundamentação e consequências, que
consiste em por em vigor parte do texto da proposição que tenha obtido aprovação
em ambas as Casas do Congresso Nacional, remanescendo as porções restantes
para uma apreciação posterior por meio de nova proposição, a ser enviada à Casa
revisora. Essa técnica vem sendo adotada no âmbito do Congresso Nacional, a
exemplo do que ocorreu nos procedimentos relativos às Reformas Administrativa, da
Previdência e do Judiciário.
DATA: abril de 2009
3
2 APRESENTAÇÃO
O Estado Democrático de Direito assenta-se sobre a premissa
fundamental de que a lei constitui a expressão máxima da soberania popular,
decidida e promulgada, num regime representativo, por meio de seus mandatários
eleitos pelo voto popular. O parlamento, por conseguinte, ocupa lugar central na
organização do Estado, constituindo a principal instância de manifestação da
vontade política de uma nação.
Questão importante numa democracia refere-se à organização
e funcionamento desse órgão representativo, o que abarca, em grande parte, a
regulamentação dos processos de discussão e formação da vontade política,
finalmente expressa em forma normativa. O processo legislativo, entendido como
“um conjunto de atos preordenados visando à criação de normas de Direito”,1 tem
por objeto a formação das diferentes espécies normativas reconhecidas num dado
ordenamento jurídico, e sua estrita observância constitui, acima de tudo, garantia da
correspondência entre a lei formal e a vontade popular.
No Brasil, a elaboração legislativa tem particular relevância na
alteração da Constituição de 1988, cujo texto consagra a própria rigidez como regra
absoluta, instituindo, em seu art. 60, a emenda como forma ordinária de reforma
constitucional. Não obstante sua minudência, o citado dispositivo não regula a
matéria de forma exaustiva, o que permitiu alguma flexibilidade na prática
parlamentar ao longo dos últimos vinte anos. Uma das praxes adotadas pelo
Legislativo brasileiro foi a chamada promulgação “fatiada” das propostas de emenda
à Constituição, que consiste em pôr em vigor parte do texto da proposição original
que se entende ter obtido aprovação em ambas as Casas do Congresso Nacional,
transformando a porção restante em nova proposição, enviada então à Casa
revisora. Esse procedimento foi adotado, por exemplo, na Reforma Administrativa,
(EC nº 19/1998), na Reforma da Previdência (EC nº 40/2003) e na Reforma do
Judiciário (EC nº 45/2004).
1 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
p. 525.
4
Fundada na justificativa de que permitiria a expedita
promulgação de matérias objeto de suficiente consenso parlamentar, a promulgação
“fatiada” não deixou, entretanto, de suscitar conflitos. Tomando-se como amostra a
Emenda Constitucional nº 45, de 2004, que pôs em vigor parte da reforma do
Judiciário, vê-se que alguns dos seus dispositivos contêm significativas
ambigüidades e contradições, tornando o texto, em alguns casos, de difícil
aplicação. À época, uma pronta mobilização das categorias ligadas à prestação
jurisdicional rapidamente trouxe essas questões à apreciação do Supremo Tribunal
Federal, como nos casos da ADIN nº 3.367-DF, que decidiu pela constitucionalidade
do recém-criado Conselho Nacional de Justiça, e a Medida Cautelar na ADIN nº.
3.395-DF, que suspendeu dispositivo atribuindo competência à Justiça do Trabalho
para julgar causas envolvendo servidores públicos.
Mencione-se, também, a ADIN nº 2.013-DF, na qual se
questionou o fato de que a EC nº 21/1999, cuja tramitação começara no Senado
federal, foi promulgada sem retornar à Casa iniciadora, não obstante houvesse sido
alterada na Câmara dos Deputados.
Mais recentemente, uma alteração feita pelo Senado Federal à
PEC nº 333/2004 (conhecida como a “PEC dos Vereadores”) criou um conflito entre
as duas Casas do Congresso Nacional. Segundo a Mesa da Câmara dos
Deputados, a supressão, pelo Senado Federal, do dispositivo que limita as despesas
das Câmaras Municipais implica alteração substancial do texto, o que cria a
necessidade de retorno da proposição à Casa iniciadora para nova apreciação O
Senado Federal, por sua vez, entende que a supressão é possível, o que o levou a
impetrar mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal para tentar obrigar a
Câmara dos Deputados a assinar a promulgação.
Não obstante, a promulgação “fatiada” de propostas de
emenda à Constituição consolidou-se na processo legislativo brasileiro, sob o
beneplácito de ambas as Casas do Congresso Nacional e também do Poder
Judiciário. Sua fundamentação e suas consequências, entretanto, ainda não
receberam exame aprofundado pela doutrina, merecendo, pela sua importância,
uma análise mais substancial.
5
3 JUSTIFICATIVA
A promulgação “fatiada” de propostas de emenda à
Constituição tem apresentado repercussões importantes na prática parlamentar
brasileira. De início, cabe indagar sobre a possibilidade de desvios de
inconstitucionalidade na formação da vontade política e seus reflexos sobre a
democracia representativa. A decisão sobre o que já foi objeto de consenso pode,
por exemplo, ser equivocada ou arbitrária, ou ser tomada por órgãos ou processos
internos que não possuem suficiente representatividade, em relação ao Plenário das
Casas Legislativas.
Outrossim, os critérios para essa decisão não estão
claramente estabelecidos, considerando-se que não se pode facilmente determinar a
“intenção” do legislador, nas votações necessárias à aprovação de uma emenda
constitucional. Vale lembrar que, no sistema romano-germânico adotado no Brasil,
via de regra, interpreta-se a mens legis, e não a mens legislatoris, o que põe em
questão a investigação de fontes parlamentares (debates, atas de discussão etc.) na
tarefa de identificar textos já passíveis de promulgação. Quais, então, seriam os
parâmetros hermenêuticos para realizar essa delicada tarefa? A alteração do sentido
do texto parece ser a linha divisória, como já indicado pela jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal.2
A transferência das decisões sobre a matéria aos Tribunais,
entretanto, traz à tona outras questões. Tradicionalmente, a concretização das
normas constitucionais e regimentais relativas ao processo legislativo, no âmbito
parlamentar, constitui matéria afeta à economia interna do Congresso Nacional. A
interpretação e aplicação dessas normas, portanto, estão ligadas ao regime de
separação de Poderes, garantindo a independência do Legislativo, expressa na
doutrina dos atos interna corporis. Não obstante, essa independência abrange
igualmente a interpretação da própria vontade expressa nas votações, traduzindo-se
na competência exclusiva de elaborar a redação final das proposições, após a fase
2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.367-DF. Relator Min.
Cezar Peluso. Diário da Justiça, Brasília, 17 mar. 2006. p. 04.
6
deliberativa. De outra parte, a observância do devido processo legislativo constitui
direito público subjetivo dos parlamentares, que, frequentemente, buscam o
Supremo Tribunal Federal para reclamar a aplicação do direito parlamentar. Essa
dinâmica pode conduzir, como de fato já ocorreu, a uma tensão entre os Poderes
Legislativo e Judiciário, pondo em teste o sistema de freios e contrapesos e a
equação de distribuição de competências, conforme concebida pelo constituinte
originário.
A judicialização das decisões políticas em matéria de reforma
constitucional também deve ser tomada em consideração na espécie. É sabido que
o Supremo Tribunal Federal tem assumido papel cada vez mais destacado no
cenário institucional brasileiro, levada a efeito após a promulgação da Constituição
de 1988 e, particularmente, após a reforma do Judiciário, decorrente da Emenda nº
45, de 2004. As consequências de um maior protagonismo da Corte, em função das
decisões sobre promulgações “fatiadas”, especialmente sobre a medida do
consenso alcançado pelas Casas do Congresso Nacional, merecem estudo mais
aprofundado.
Finalmente, no âmbito da técnica legislativa, as repercussões
da promulgação “fatiada” de propostas de emenda à Constituição são relevantes, à
medida que o texto poderá resultar ambíguo ou incongruente, como a reforma do
Judiciário o demonstrou na prática. Essa possibilidade, entretanto, pode ser
defendida com base no pragmatismo político, que vê o texto legislativo como menor
denominador comum – fruto do “consenso possível” –, ou, ao contrário, rechaçada
pela idéia de que a norma deverá exprimir uma desejada excelência técnica, em prol
da unidade e da coerência do ordenamento jurídico.
7
4 OBJETIVO
O objetivo desta pesquisa é Identificar e examinar a natureza, a
fundamentação, as consequências e o alcance da aplicação, no âmbito do processo
legislativo levado a efeito pelo Congresso Nacional, da técnica de promulgação
“fatiada” de propostas de emenda à Constituição.
8
5 PROBLEMA
No Brasil, a consequência mais evidente de uma Constituição
rígida e analítica, como a atual Carta Política brasileira, traduz-se na necessidade
frequente de reforma constitucional, pois, de certa maneira, quanto mais extenso e
detalhista é um texto, maior a exigência de adequá-lo aos diferentes projetos
políticos dos sucessivos governos democráticos. Após 1988, cinquenta e sete
propostas de emenda à Constituição foram promulgadas pelo Congresso Nacional
para atender a distintos anseios da população ou de grupos sociais específicos.
O elevado número de PECs já aprovado e em discussão, no
entanto, contrasta com a pouca atenção dedicada pela doutrina nacional às regras
processuais concernentes à tramitação dessas proposições. Dentre os
constitucionalistas nacionais de maior importância, apenas dois – José Afonso da
Silva3 e Manoel Gonçalves Ferreira Filho 4 – escreveram livros devotados ao exame
mais aprofundado do tema e, ainda assim, várias questões nessas obras deixaram
de ser discutidas com afinco. A pouca consistência da doutrina sobre os problemas
pertinentes à tramitação das PECs, por seu turno, produz insegurança jurídica e é
usualmente uma das causas da declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo
tribunal Federal de emendas constitucionais aprovadas pelo Congresso Nacional. 5
3 Cf. SILVA, José Afonso da. Processo constitucional e formação das leis. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
4 Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
5 Nesse sentido, veja-se o informativo 474 do STF sobre a Emenda Constitucional n° 19/1998: “Em
conclusão de julgamento, o Tribunal deferiu parcialmente medida liminar em ação direta ajuizada
pelo Partido dos Trabalhadores - PT, pelo Partido Democrático Trabalhista - PDT, pelo Partido
Comunista do Brasil - PC do B, e pelo Partido Socialista do Brasil - PSB, para suspender a vigência
do art. 39, caput, da Constituição Federal, com a redação que lhe foi dada pela Emenda
Constitucional 19/98 (“A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão conselho
de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos
respectivos Poderes.”), mantida sua redação original, que dispõe sobre a instituição do regime
jurídico único dos servidores públicos — v. Informativos 243, 249, 274 e 420. Entendeu-se
caracterizada a aparente violação ao § 2º do art. 60 da CF (“A proposta será discutida e votada em
cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em
ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.”), uma vez que o Plenário da Câmara dos
Deputados mantivera, em primeiro turno, a redação original do caput do art. 39, e a comissão
especial, incumbida de dar nova redação à proposta de emenda constitucional, suprimira o
dispositivo, colocando, em seu lugar, a norma relativa ao § 2º, que havia sido aprovada em primeiro
turno. Esclareceu-se que a decisão terá efeitos ex nunc, subsistindo a legislação editada nos
termos da emenda declarada suspensa. Vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski, Joaquim
Barbosa e Nelson Jobim, que indeferiam a liminar. ADI 2135 MC/DF, rel. orig. Min. Néri da Silveira,
rel. p/ o acórdão Min. Ellen Gracie, 2.8.2006. (ADI-2135)
9
Dentre os vários aspectos sobre o processo legislativo
pertinente à reforma constitucional que poderiam ser melhor avaliados, mencione-se
a promulgação “fatiada” de propostas de emenda à Constituição. Nesse sentido,
vários questionamentos podem ser levantados: quando é possível a utilização dessa
técnica? Em quais situações as matérias teriam conexão temática e dependência
mútua e não poderiam ser objeto de promulgação “fatiada”? Até que ponto a
promulgação apenas de matérias objeto de consenso afeta a autonomia da Casa
iniciadora? Podem os Regimentos Internos da Câmara dos Deputados e do Senado
Federal estabelecer normas para tratar da promulgação “fatiada” ou, no caso, a
interpretação sobre o procedimento correto deve decorrer diretamente da
Constituição?
Finalmente, ao examinar as questões relacionadas ao que se
denominou de promulgação “fatiada” de propostas de emenda à Constituição,
sobreleva-se a necessidade de trazer maior segurança ao processo legislativo e ao
ordenamento jurídico. Busca-se, assim, pautar de forma mais técnica a atuação do
constituinte derivado, evitando que eventuais declarações de inconstitucionalidade
formal pelo Supremo Tribunal Federal possam provocar desgastes desnecessários à
imagem do Legislativo.
Ademais, impõe-se examinar se a maior flexibilidade
proporcionada pela promulgação “fatiada” de propostas de emenda à Constituição,
evitando desnecessárias idas e vindas entre as duas Casas do Congresso Nacional,
compromete o especial processo de votação exigido para a reforma de uma
Constituição rígida, como a vigente Carta Política brasileira.
10
7 METODOLOGIA
Os procedimentos metodológicos a serem utilizados para a
realização deste projeto envolvem, basicamente, a pesquisa bibliográfica e a
pesquisa documental.
A pesquisa bibliográfica resultará da coleta e leitura de livros e
artigos científicos publicados em periódicos e revistas especializadas, a partir de
uma ampla e atualizada revisão da literatura nacional e estrangeira sobre o tema,
destacadamente nas áreas do Direito, da Ciência Política e da Filosofia, envolvendo
juristas, cientistas e filósofos como Alexandre de Moraes, Paulo Bonavides,
José Afonso da Silva, Luís Roberto Barroso, Manoel Gonçalves Ferreira Filho,
Paulo Bonavides, José Joaquim Gomes Canotilho, Jorge Miranda, Norberto
Bobbio, John Rawls e Jürgen Habbermas.
A pesquisa documental consistirá no exame de artigos e
reportagens da imprensa, da legislação constitucional e regimental pertinente, do
repertório de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e dos pareceres
elaborados pelos relatores de diversas propostas de emenda à Constituição que
tramitam ou tramitaram no âmbito da Câmara dos Deputados e do Senado Federal e
dos artigos e reportagens da imprensa.
11
8 CRONOGRAMA
Em face da complexidade a profundidade do tema, prevê-se que
projeto como um todo será executado no período de dois anos, com início previsto
para maio de 2009, dividido em quatro semestres.
No primeiro semestre, proceder-se-ão à revisão e ao
aprofundamento do marco teórico, com a seleção e análise dos dados coletados.
No segundo semestre, proceder-se-á à elaboração do relatório
descritivo dos resultados obtidos.
No terceiro semestre, proceder-se-á à redação do documento
preliminar para análise, discussão e revisão.
No quarto semestre, proceder-se-á à redação do documento final,
com a apresentação de possíveis soluções ou alternativas para os problemas
detectados.
12
9 ORÇAMENTO
Considerando o uso de recursos computacionais como os aplicativos
e a internet e a utilização de bases de dados já disponíveis, nomeadamente na
Câmara dos Deputados, no Senado Federal e no Supremo Tribunal Federal, não
estão previstos recursos financeiros de monta para a execução do presente projeto.
13
10 BIBLIOGRAFIA
ACKERMAN, Bruce. A nova separação de poderes. 1. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2009.
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição:
fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6. ed. São
Paulo: Saraiva, 2004.
BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. 13. ed. Brasília: Editora UnB, 2007.
2 v.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 23. ed. São Paulo:
Malheiros, 2008.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da
constituição. 7. ed. Lisboa: Almedina, 2008.
CASSEB, Paulo Adib. Processo legislativo: situação das comissões
permanentes e temporárias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
CLÉVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo. 2. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
COELHO, Fábio Alexandre. Processo legislativo. 1. ed. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2007.
DEL NEGRI, André. Controle de constitucionalidade no processo legislativo:
teoria da legitimidade democrática. 1. ed. Belo Horizonte: Forum, 2003.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 6. ed. São
Paulo: Saraiva, 2008.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. 2 v.
14
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Coimbra: Almedina, 2008,
7v.
________, Jorge. Contributo para uma teoria da inconstitucionalidade.
Coimbra: Coimbra Editora, 2007.
________, Jorge. Teoria do estado e da constituição. 1. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2007.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 23. ed. São Paulo: Atlas,
2008.
RAWLS, John. O liberalismo político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000.
______. Justiça e democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 31. ed. São
Paulo: Malheiros, 2008.
______. Processo constitucional e formação das leis. 2. ed. São Paulo:
Malheiros, 2008.
TAVARES, Sebastião Gilberto Mota. Controle jurisdicional preventivo da lei: o
devido processo legislativo. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

JUDICIALIZAÇÃO, ATIVISMO JUDICIAL E LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA

Luís Roberto Barroso

Professor Titular de Direito Constitucional, Doutor e Livre-Docente – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre pela Yale Law School. Autor dos livros Curso de Direito Constitucional Contemporâneo e Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro, dentre outros. Advogado.




Sumário: I. Introdução. II. A judicialização da vida. III. O ativismo judicial. IV. Objeções à crescente intervenção judicial na vida brasileira. 1. Riscos para a legitimidade democrática. 2. Risco de politização da justiça. 3. A capacidade institucional do Judiciário e seus limites. V. Conclusão I.



INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal tem desempenhado um papel ativo na vida institucional brasileira. O ano de 2008 não foi diferente. A centralidade da Corte – e, de certa forma, do Judiciário como um todo – na tomada de decisões sobre algumas das grandes questões nacionais tem gerado aplauso e crítica, e exige uma reflexão cuidadosa. O fenômeno, registre-se desde logo, não é peculiaridade nossa. Em diferentes partes do mundo, em épocas diversas, cortes constitucionais ou supremas cortes destacaram-se em determinadas quadras históricas como protagonistas de decisões envolvendo questões de largo alcance político, implementação de políticas públicas ou escolhas morais em temas controvertidos na sociedade.
De fato, desde o final da Segunda Guerra Mundial verificou-se, na maior parte dos países ocidentais, um avanço da justiça constitucional sobre o espaço da política majoritária, que é aquela feita no âmbito do Legislativo e do Executivo, tendo por combustível o voto popular. Os exemplos são numerosos e inequívocos. No Canadá, a Suprema Corte foi chamada a se manifestar sobre a constitucionalidade de os Estados Unidos fazerem testes com mísseis em solo canadense. Nos Estados Unidos, o último capítulo da eleição presidencial de 2000 foi escrito pela Suprema Corte, no julgamento de Bush v. Gore. Em Israel, a Suprema Corte decidiu sobre a compatibilidade, com a Constituição e com atos internacionais, da construção de um muro na fronteira com o território palestino.
A Corte Constitucional da Turquia tem desempenhado um papel vital na preservação de um Estado laico, protegendo-o do avanço do fundamentalismo islâmico. Na Hungria e na Argentina, planos econômicos de largo alcance tiveram sua validade decidida pelas mais altas Cortes. Na Coréia, a Corte Constitucional restituiu o mandato de um presidente que havia sido destituído por impeachment2.
Todos estes casos ilustram a fluidez da fronteira entre política e justiça no mundo contemporâneo. Ainda assim, o caso brasileiro é especial, pela extensão e pelo volume. Circunstâncias diversas, associadas à Constituição, à realidade política e às competências dos Poderes alçaram o Supremo Tribunal Federal, nos últimos tempos, às manchetes dos jornais. Não exatamente em uma seção sobre juízes e tribunais – que a maioria dos jornais não tem, embora seja uma boa idéia –, mas nas seções de política, economia, ciências, polícia. Bastante na de polícia.
Acrescente-se a tudo isso a transmissão direta dos julgamentos do Plenário da Corte pela TV Justiça. Em vez de audiências reservadas e deliberações a portas fechadas, como nos tribunais de quase todo o mundo, aqui se julga sob o olhar implacável das câmeras de televisão. Há quem não goste e, de fato, é possível apontar inconveniências. Mas o ganho é maior do que a perda. Em um país com o histórico do nosso, a possibilidade de assistir onze pessoas bem preparadas e bem intencionadas decidindo questões nacionais é uma boa imagem. A visibilidade pública contribui para a transparência, para o controle social e, em última análise, para a democracia.

II. A JUDICIALIZAÇÃO DA VIDA

Judicialização significa que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo – em cujo âmbito se encontram o Presidente da República, seus ministérios e a administração pública em geral. Como intuitivo, a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade. O fenômeno tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma tendência mundial; outras estão diretamente relacionadas ao modelo institucional brasileiro.
A seguir, uma tentativa de sistematização da matéria.
A primeira grande causa da judicialização foi a redemocratização do país, que teve como ponto culminante a promulgação da Constituição de 1988. Nas últimas décadas, com a recuperação das garantias da magistratura, o Judiciário deixou de ser um departamento técnico-especializado e se transformou em um verdadeiro poder político, capaz de fazer valer a Constituição e as leis, inclusive em confronto com os outros Poderes. No Supremo Tribunal Federal, uma geração de novos Ministros já não deve seu título de investidura ao regime militar. Por outro lado, o ambiente democrático reavivou a cidadania, dando maior nível de informação e de consciência de direitos a amplos segmentos da população, que passaram a buscar a proteção de seus interesses perante juízes e tribunais. Nesse mesmo contexto, deu-se a expansão institucional do Ministério Público, com aumento da relevância de sua atuação fora da área estritamente penal, bem como a presença crescente da Defensoria Pública em diferentes partes do Brasil. Em suma: a redemocratização fortaleceu e expandiu o Poder Judiciário, bem como aumentou a demanda por justiça na sociedade brasileira.
A segunda causa foi a constitucionalização abrangente, que trouxe para a Constituição inúmeras matérias que antes eram deixadas para o processo político majoritário e para a legislação ordinária. Essa foi, igualmente, uma tendência mundial, iniciada com as Constituições de Portugal (1976) e Espanha (1978), que foi potencializada entre nós com a Constituição de 1988. A Carta brasileira é analítica, ambiciosa3, desconfiada do legislador. Como intuitivo, constitucionalizar uma matéria significa transformar Política em Direito. Na medida em que uma questão – seja um direito individual, uma prestação estatal ou um fim público – é disciplinada em uma norma constitucional, ela se transforma, potencialmente, em uma pretensão jurídica, que pode ser formulada sob a forma de ação judicial. Por exemplo: se a Constituição assegura o direito de acesso ao ensino fundamental ou ao meio-ambiente equilibrado, é possível judicializar a exigência desses dois direitos, levando ao Judiciário o debate sobre ações concretas ou políticas públicas praticadas nessas duas áreas.
A terceira e última causa da judicialização, a ser examinada aqui, é o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, um dos mais abrangentes do mundo4. Referido como híbrido ou eclético, ele combina aspectos de dois sistemas diversos: o americano e o europeu. Assim, desde o início da República, adota-se entre nós a fórmula americana de controle incidental e difuso, pelo qual qualquer juiz ou tribunal pode deixar de aplicar uma lei, em um caso concreto que lhe tenha sido submetido, caso a considere inconstitucional. Por outro lado, trouxemos do modelo europeu o controle por ação direta, que permite que determinadas matérias sejam levadas em tese e imediatamente ao Supremo Tribunal Federal. A tudo isso se soma o direito de propositura amplo, previsto no art. 103, pelo qual inúmeros órgãos, bem como entidades públicas e privadas – as sociedades de classe de âmbito nacional e as confederações sindicais – podem ajuizar ações diretas. Nesse cenário, quase qualquer questão política ou moralmente relevante pode ser alçada ao STF.
De fato, somente no ano de 2008, foram decididas pelo Supremo Tribunal Federal, no âmbito de ações diretas – que compreendem a ação direta de inconstitucionalidade (ADIn), a ação declaratória de constitucionalidade (ADC) e a argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) – questões como: a) o 5
pedido de declaração de inconstitucionalidade, pelo Procurador-Geral da República, do art. 5º da Lei de Biossegurança, que permitiu e disciplinou as pesquisas com células-tronco embrionárias (ADIn 3.150); (ii) o pedido de declaração da constitucionalidade da Resolução nº 7, de 2006, do Conselho Nacional de Justiça, que vedou o nepotismo no âmbito do Poder Judiciário (ADC 12); (iii) o pedido de suspensão dos dispositivos da Lei de Imprensa incompatíveis com a Constituição de 1988 (ADPF 130). No âmbito das ações individuais, a Corte se manifestou sobre temas como quebra de sigilo judicial por CPI, demarcação de terras indígenas na região conhecida como Raposa/Serra do Sol e uso de algemas, dentre milhares de outros. Ao se lançar o olhar para trás, pode-se constatar que a tendência não é nova e é crescente. Nos últimos anos, o STF pronunciou-se ou iniciou a discussão em temas como: (i) Políticas governamentais, envolvendo a constitucionalidade de aspectos centrais da Reforma da Previdência (contribuição de inativos) e da Reforma do Judiciário (criação do Conselho Nacional de Justiça); (ii) Relações entre Poderes, com a determinação dos limites legítimos de atuação das Comissões Parlamentares de Inquérito (como quebras de sigilos e decretação de prisão) e do papel do Ministério Público na investigação criminal; (iii) Direitos fundamentais, incluindo limites à liberdade de expressão no caso de racismo (Caso Elwanger) e a possibilidade de progressão de regime para os condenados pela prática de crimes hediondos. Deve-se mencionar, ainda, a importante virada da jurisprudência no tocante ao mandado de injunção, em caso no qual se determinou a aplicação do regime jurídico das greves no setor privado àquelas que ocorram no serviço público.
É importante assinalar que em todas as decisões referidas acima, o Supremo Tribunal Federal foi provocado a se manifestar e o fez nos limites dos pedidos formulados. O Tribunal não tinha a alternativa de conhecer ou não das ações, de se pronunciar ou não sobre o seu mérito, uma vez preenchidos os requisitos de cabimento. Não se pode imputar aos Ministros do STF a ambição ou a pretensão, em face dos precedentes referidos, de criar um modelo juriscêntrico, de hegemonia 6
judicial. A judicialização, que de fato existe, não decorreu de uma opção ideológica, filosófica ou metodológica da Corte. Limitou-se ela a cumprir, de modo estrito, o seu papel constitucional, em conformidade com o desenho institucional vigente. Pessoalmente, acho que o modelo tem nos servido bem.
III. O ATIVISMO JUDICIAL

A judicialização e o ativismo judicial são primos. Vêm, portanto, da mesma família, freqüentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens. Não são gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas. A judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política. Em todos os casos referidos acima, o Judiciário decidiu porque era o que lhe cabia fazer, sem alternativa. Se uma norma constitucional permite que dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo a matéria. Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. A idéia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas.7
As origens do ativismo judicial remontam à jurisprudência norte-americana. Registre-se que o ativismo foi, em um primeiro momento, de natureza conservadora. Foi na atuação proativa da Suprema Corte que os setores mais reacionários encontraram amparo para a segregação racial (Dred Scott v. Sanford, 1857) e para a invalidação das leis sociais em geral (Era Lochner, 1905-1937), culminando no confronto entre o Presidente Roosevelt e a Corte, com a mudança da orientação jurisprudencial contrária ao intervencionismo estatal (West Coast v. Parrish, 1937). A situação se inverteu completamente a partir da década de 50, quando a Suprema Corte, sob a presidência de Warren (1953-1969) e nos primeiros anos da Corte Burger (até 1973), produziu jurisprudência progressista em matéria de direitos fundamentais, sobretudo envolvendo negros (Brown v. Board of Education, 1954), acusados em processo criminal (Miranda v. Arizona, 1966) e mulheres (Richardson v. Frontiero, 1973), assim como no tocante ao direito de privacidade (Griswold v. Connecticut, 1965) e de interrupção da gestação (Roe v. Wade, 1973). O oposto do ativismo é a auto-contenção judicial, conduta pela qual o Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações dos outros Poderes. Por essa linha, juízes e tribunais (i) evitam aplicar diretamente a Constituição a situações que não estejam no seu âmbito de incidência expressa, aguardando o pronunciamento do legislador ordinário; (ii) utilizam critérios rígidos e conservadores para a declaração de inconstitucionalidade de leis e atos normativos; e (iii) abstêm-se de interferir na definição das políticas públicas. Até o advento da Constituição de 1988, essa era a inequívoca linha de atuação do Judiciário no Brasil. A principal diferença metodológica entre as duas posições está em que, em princípio, o ativismo judicial procura extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional, sem contudo invadir o campo da criação livre do Direito. A auto-contenção, por sua vez, restringe o espaço de incidência da Constituição em favor das instâncias tipicamente políticas.
O Judiciário, no Brasil recente, tem exibido, em determinadas situações, uma posição claramente ativista. Não é difícil ilustrar a tese. Veja-se, em 8
primeiro lugar, um caso de aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário: o da fidelidade partidária. O STF, em nome do princípio democrático, declarou que a vaga no Congresso pertence ao partido político. Criou, assim, uma nova hipótese de perda de mandato parlamentar, além das que se encontram expressamente previstas no texto constitucional. Por igual, a extensão da vedação do nepotismo aos Poderes Legislativo e Executivo, com a expedição de súmula vinculante, após o julgamento de um único caso, também assumiu uma conotação quase-normativa. O que a Corte fez foi, em nome dos princípios da moralidade e da impessoalidade, extrair uma vedação que não estava explicitada em qualquer regra constitucional ou infraconstitucional expressa.
Outro exemplo, agora de declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do Congresso, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição: o caso da verticalização5. O STF declarou a inconstitucionalidade da aplicação das novas regras sobre coligações eleitorais à eleição que se realizaria em menos de uma ano da sua aprovação. Para tanto, precisou exercer a competência – incomum na maior parte das democracias – de declarar a inconstitucionalidade de uma emenda constitucional, dando à regra da anterioridade anual da lei eleitoral (CF, art. 16) o status de cláusula pétrea. É possível incluir nessa mesma categoria a declaração de inconstitucionalidade das normas legais que estabeleciam cláusula de barreira, isto é, limitações ao funcionamento parlamentar de partidos políticos que não preenchessem requisitos mínimos de desempenho eleitoral.
5 Cláudio Pereira de Souza Neto, Verticalização, cláusula de barreira e pluralismo político: uma crítica consequencialista à decisão do STF na ADIN 3685, Interesse público 37, 2006.
Por fim, na categoria de ativismo mediante imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas, o 9
exemplo mais notório provavelmente é o da distribuição de medicamentos e determinação de terapias mediante decisão judicial. A matéria ainda não foi apreciada a fundo pelo Supremo Tribunal Federal, exceto em pedidos de suspensão de segurança. Todavia, nas Justiças estadual e federal em todo o país, multiplicam-se decisões que condenam a União, o Estado ou o Município – por vezes, os três solidariamente – a custear medicamentos e terapias que não constam das listas e protocolos do Ministério da Saúde ou das Secretarias Estaduais e municipais. Em alguns casos, os tratamentos exigidos são experimentais ou devem ser realizados no exterior. Adiante se voltará a esse tema. O binômio ativismo-autocontenção judicial está presente na maior parte dos países que adotam o modelo de supremas cortes ou tribunais constitucionais com competência para exercer o controle de constitucionalidade de leis e atos do Poder Público. O movimento entre as duas posições costuma ser pendular e varia em função do grau de prestígio dos outros dois Poderes. No Brasil dos últimos anos, apesar de muitos vendavais, o Poder Executivo, titularizado pelo Presidente da República, desfruta de inegável popularidade. Salvo por questões ligadas ao uso excessivo de medidas provisórias e algumas poucas outras, é limitada a superposição entre Executivo e Judiciário. Não assim, porém, no que toca ao Congresso Nacional. Nos últimos anos, uma persistente crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade no âmbito do Legislativo tem alimentado a expansão do Judiciário nessa direção, em nome da Constituição, com a prolação de decisões que suprem omissões e, por vezes, inovam na ordem jurídica, com caráter normativo geral.
O fenômeno tem uma face positiva: o Judiciário está atendendo a demandas da sociedade que não puderam ser satisfeitas pelo parlamento, em temas como greve no serviço público, eliminação do nepotismo ou regras eleitorais. O aspecto negativo é que ele exibe as dificuldades enfrentadas pelo Poder Legislativo – e isso não se passa apenas no Brasil – na atual quadra histórica. A adiada reforma política é uma necessidade dramática do país, para fomentar autenticidade partidária, estimular vocações e reaproximar a classe política da sociedade civil. Decisões 10
ativistas devem ser eventuais, em momentos históricos determinados. Mas não há democracia sólida sem atividade política intensa e saudável, nem tampouco sem Congresso atuante e investido de credibilidade. Um exemplo de como a agenda do país delocou-se do Legislativo para o Judiciário: as audiências públicas e o julgamento acerca das pesquisas com células-tronco embrionárias, pelo Supremo Tribunal Federal, tiveram muito mais visibilidade e debate público do que o processo legislativo que resultou na elaboração da lei.
IV. OBJEÇÕES À CRESCENTE INTERVENÇÃO JUDICIAL NA VIDA BRASILEIRA

Três objeções podem ser opostas à judicialização e, sobretudo, ao ativismo judicial no Brasil. Nenhuma delas infirma a importância de tal atuação, mas todas merecem consideração séria. As críticas se concentram nos riscos para a legitimidade democrática, na politização indevida da justiça e nos limites da capacidade institucional do Judiciário.
1. Riscos para a legitimidade democrática

Os membros do Poder Judiciário – juízes, desembargadores e ministros – não são agentes públicos eleitos. Embora não tenham o batismo da vontade popular, magistrados e tribunais desempenham, inegavelmente, um poder político, inclusive o de invalidar atos dos outros dois Poderes. A possibilidade de um órgão não eletivo como o Supremo Tribunal Federal sobrepor-se a uma decisão do Presidente da República – sufragado por mais de 40 milhões de votos – ou do Congresso – cujos 513 membros foram escolhidos pela vontade popular – é identificada na teoria constitucional como dificuldade contramajoritária6. Onde estaria, então, sua legitimidade para invalidar decisões daqueles que exercem mandato popular, que foram escolhidos pelo povo? Há duas justificativas: uma de natureza normativa e outra filosófica.
6 Alexander Bickel, The least dangerous branch, 1986, p. 16 e s. 11
O fundamento normativo decorre, singelamente, do fato de que a Constituição brasileira atribui expressamente esse poder ao Judiciário e, especialmente, ao Supremo Tribunal Federal. A maior parte dos Estados democráticos reserva uma parcela de poder político para ser exercida por agentes públicos que não são recrutados pela via eleitoral, e cuja atuação é de natureza predominantemente técnica e imparcial. De acordo com o conhecimento tradicional, magistrados não têm vontade política própria. Ao aplicarem a Constituição e as leis, estão concretizando decisões que foram tomadas pelo constituinte ou pelo legislador, isto é, pelos representantes do povo. Essa afirmação, que reverencia a lógica da separação de Poderes, deve ser aceita com temperamentos, tendo em vista que juízes e tribunais não desempenham uma atividade puramente mecânica7. Na medida em que lhes cabe atribuir sentido a expressões vagas, fluidas e indeterminadas, como dignidade da pessoa humana, direito de privacidade ou boa-fé objetiva, tornam-se, em muitas situações, co-participantes do processo de criação do Direito. A justificação filosófica para a jurisdição constitucional e para a atuação do Judiciário na vida institucional é um pouco mais sofisticada, mas ainda assim fácil de compreender. O Estado constitucional democrático, como o nome sugere, é produto de duas idéias que se acoplaram, mas não se confundem. Constitucionalismo significa poder limitado e respeito aos direitos fundamentais. O Estado de direito como expressão da razão. Já democracia signfica soberania popular, governo do povo. O poder fundado na vontade da maioria. Entre democracia e constitucionalismo, entre vontade e razão, entre direitos fundamentais e governo da maioria, podem surgir situações de tensão e de conflitos aparentes.
7 Eros Roberto Grau, Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, 2002, p. 64; Friedrich Müller, Métodos de trabalho do direito constitucional, 2005, p. 6-7.
Por essa razão, a Constituição deve desempenhar dois grandes papéis. Um deles é o de estabelecer as regras do jogo democrático, assegurando a participação política ampla, o governo da maioria e a alternância no poder. Mas a 12
democracia não se resume ao princípio majoritário. Se houver oito católicos e dois muçulmanos em uma sala, não poderá o primeiro grupo deliberar jogar o segundo pela janela, pelo simples fato de estar em maior número. Aí está o segundo grande papel de uma Constituição: proteger valores e direitos fundamentais, mesmo que contra a vontade circunstancial de quem tem mais votos. E o intérprete final da Constituição é o Supremo Tribunal Federal. Seu papel é velar pelas regras do jogo democrático e pelos direitos fundamentais, funcionando como um forum de princípios8 – não de política – e de razão pública9 – não de doutrinas abrangentes, sejam ideologias políticas ou concepções religiosas.
8 Ronald Dworkin, The forum of principle. In: A matter of principle, 1985. 9 John Rawls, O liberalismo político, 2000, p. 261. 10 Daniel Sarmento, Ubiqüidade constituconal: os dois lados da moeda, Revista de Direito do Estado 2:83, 2006. Embora ela se irradie por todo o sistema, e deva sempre estar presente em alguma medida, ela não deve ser invocada para asfixiar a atuação do legislador.
Portanto, a jurisdição constitucional bem exercida é antes uma garantia para a democracia do que um risco. Impõe-se, todavia, uma observação final. A importância da Constituição – e do Judiciário como seu intérprete maior – não pode suprimir, por evidente, a política, o governo da maioria, nem o papel do Legislativo. A Constituição não pode ser ubíqua10. Observados os valores e fins constitucionais, cabe à lei, votada pelo parlamento e sancionada pelo Presidente, fazer as escolhas entre as diferentes visões alternativas que caracterizam as sociedades pluralistas. Por essa razão, o STF deve ser deferente para com as deliberações do Congresso. Com exceção do que seja essencial para preservar a democracia e os direitos fundamentais, em relação a tudo mais os protagonistas da vida política devem ser os que têm votos. Juízes e tribunais não podem presumir demais de si próprios – como ninguém deve, aliás, nessa vida – impondo suas escolhas, suas preferências, sua vontade. Só atuam, legitimamente, quando sejam capazes de fundamentar racionalmente suas decisões, com base na Constituição.
2. Risco de politização da Justiça
13
Direito é política, proclamava ceticamente a teoria crítica do Direito, denunciando a superestrutura jurídica como uma instância de poder e dominação. Apesar do refluxo das concepções marxistas na quadra atual, é fora de dúvida que já não subsiste no mundo contemporâneo a crença na idéia liberal-positivista de objetividade plena do ordenamento e de neutralidade absoluta do intérprete. Direito não é política. Somente uma visão distorcida do mundo e das instituições faria uma equiparação dessa natureza, submetendo a noção do que é correto e justo à vontade de quem detém o poder. Em uma cultura pós-positivista, o Direito se aproxima da Ética, tornando-se instrumento da legitimidade, da justiça e da realização da dignidade da pessoa humana. Poucas críticas são mais desqualificantes para uma decisão judicial do que a acusação de que é política e não jurídica11. Não é possível ignorar, porém, que a linha divisória entre Direito e Política, que existe inegavelmente, nem sempre é nítida e certamente não é fixa12. A ambigüidade refletida no parágrafo anterior impõe a qualificação do que se entende por política. Direito é política no sentido de que (i) sua criação é produto da vontade da maioria, que se manifesta na Constituição e nas leis; (ii) sua aplicação não é dissociada da realidade política, dos efeitos que produz no meio social e dos sentimentos e expectativas dos cidadãos; (iii) juízes não são seres sem memória e sem desejos, libertos do próprio inconsciente e de qualquer ideologia e, conseqüentemente, sua subjetividade há de interferir com os juízos de valor que formula. A Constituição faz a interface entre o universo político e o jurídico, em um esforço para submeter o poder às categorias que mobilizam o Direito, como a justiça, a segurança e o bem-estar social. Sua interpretação, portanto, sempre terá uma dimensão política, ainda que balizada pelas possibilidades e limites oferecidos pelo ordenamento vigente.
11 Paul Kahn, Comparative constitutionalism in a new key, Michigan Law Review 101:2677, 2002-3, p. 2688-9. 12 V. Eduardo Mendonça, A inserção da jurisdição constitucional na democracia: algum lugar entre o direito e a política, mimeografado, 2007. 14
Evidentemente, Direito não é política no sentido de admitir escolhas livres, tendenciosas ou partidarizadas. O facciocismo é o grande inimigo do constitucionalismo13. O banqueiro que doou para o partido do governo não pode ter um regime jurídico diferente do que não doou. A liberdade de expressão de quem pensa de acordo com a maioria não pode ser protegida de modo mais intenso do que a de quem esteja com a minoria. O ministro do tribunal superior, nomeado pelo Presidente Y, não pode ter a atitude a priori de nada decidir contra o interesse de quem o investiu no cargo. Uma outra observação é pertinente aqui. Em rigor, uma decisão judicial jamais será política no sentido de livre escolha, de discricionariedade plena. Mesmo nas situações que, em tese, comportam mais de uma solução plausível, o juiz deverá buscar a que seja mais correta, mais justa, à luz dos elementos do caso concreto. O dever de motivação, mediante o emprego de argumentação racional e persuasiva, é um traço distintivo relevante da função jurisdicional e dá a ela uma específica legitimação14.
13 Paul Kahn, Comparative constitutionalism in a new key, Michigan Law Review 101:2677, 2002-2003, p. 2705. 14 Scott M. Noveck, Is judicial review compatible with democracy?, Cardozo Public Law, Policy & Ethics 6:401, 2008, p. 420. 15 Carl Schmitt, La defensa de la Constitución, 1998, p. 57.
Quando se debateu a criação do primeiro tribunal constitucional na Europa, Hans Kelsen e Carl Schmitt travaram um célebre e acirrado debate teórico acerca de quem deveria ser o guardião da Constituição. Contrário à existência da jurisdição constitucional, Schmitt afirmou que a pretensão de judicialização da política iria se perverter em politização da justiça15. No geral, sua profecia não se realizou e a fórmula fundada no controle judicial de constitucionalidade se espalhou pelo mundo com grande sucesso. Naturalmente, as advertências feitas no capítulo anterior hão de ser levadas em conta com seriedade, para que não se crie um modelo juriscêntrico e elitista, conduzido por juízes filósofos.
Nessa linha, cabe reavivar que o juiz: (i) só deve agir em nome da Constituição e das leis, e não por vontade política própria; (ii) deve ser deferente para 15
com as decisões razoáveis tomadas pelo legislador, respeitando a presunção de validade das leis; (iii) não deve perder de vista que, embora não eleito, o poder que exerce é representativo (i.e, emana do povo e em seu nome deve ser exercido), razão pela qual sua atuação deve estar em sintonia com o sentimento social, na medida do possível. Aqui, porém, há uma sutileza: juízes não podem ser populistas e, em certos casos, terão de atuar de modo contramajoritário. A conservação e a promoção dos direitos fundamentais, mesmo contra a vontade das maiorias políticas, é uma condição de funcionamento do constitucionalismo democrático. Logo, a intervenção do Judiciário, nesses casos, sanando uma omissão legislativa ou invalidando uma lei inconstitucional, dá-se a favor e não contra a democracia16.
16 Gustavo Binenbojm, A nova jurisdição constitucional brasileira, 2004, p. 246. 17 A expressão é do Ministro Celso de Mello. V. STF, Diário da Justiça da União, 12 maio 2000, MS 23.452/RJ, Rel. Min. Celso de Mello.
3. A capacidade institucional do Judiciário e seus limites

A maior parte dos Estados democráticos do mundo se organizam em um modelo de separação de Poderes. As funções estatais de legislar (criar o direito positivo), administrar (concretizar o Direito e prestar serviços públicos) e julgar (aplicar o Direito nas hipóteses de conflito) são atribuídas a órgãos distintos, especializados e independentes. Nada obstante, Legislativo, Executivo e Judiciário exercem um controle recíproco sobre as atividades de cada um, de modo a impedir o surgimento de instâncias hegemônicas17, capazes de oferecer riscos para a democracia e para os direitos fundamentais. Note-se que os três Poderes interpretam a Constituição, e sua atuação deve respeitar os valores e promover os fins nela previstos. No arranjo institucional em vigor, em caso de divergência na interpretação das normas constitucionais ou legais, a palavra final é do Judiciário. Essa primazia não significa, porém, que toda e qualquer matéria deva ser decidida em um tribunal. Nem muito menos legitima a arrogância judicial. 16
A doutrina constitucional contemporânea tem explorado duas idéias que merecem registro: a de capacidades institucionais e a de efeitos sistêmicos18. Capacidade institucional envolve a determinação de qual Poder está mais habilitado a produzir a melhor decisão em determinada matéria. Temas envolvendo aspectos técnicos ou científicos de grande complexidade podem não ter no juiz de direito o árbitro mais qualificado, por falta de informação ou conhecimento específico. Formalmente, os membros do Poder Judiciário sempre conservarão a sua competência para o pronunciamento definitivo. Mas em situações como as descritas, normalmente deverão eles prestigiar as manifestações do Legislativo ou do Executivo, cedendo o passo para juízos discricionários dotados de razoabilidade. Em questões como demarcação de terras indígenas ou transposição de rios, em que tenha havido estudos técnicos e científicos adequados, a questão da capacidade institucional deve ser sopesada de maneira criteriosa.
18 V. Cass Sunstein e Adrian Vermeulle, Intepretation and institutions, Public Law and Legal Theory Working Paper No. 28, 2002. 19 Ana Paula de Barcellos, Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático, Revista de Direito do Estado 3:17, 2006, p. 34.
Também o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejados pode recomendar, em certos casos, uma posição de cautela e deferência por parte do Judiciário. O juiz, por vocação e treinamento, normalmente estará preparado para realizar a justiça do caso concreto, a microjustiça19. Ele nem sempre dispõe das informações, do tempo e mesmo do conhecimento para avaliar o impacto de determinadas decisões, proferidas em processos individuais, sobre a realidade de um segmento econômico ou sobre a prestação de um serviço público. Tampouco é passível de responsabilização política por escolhas desastradas. Exemplo emblemático nessa matéria tem sido o setor de saúde. Ao lado de intervenções necessárias e meritórias, tem havido uma profusão de decisões extravagantes ou emocionais em matéria de medicamentos e terapias, que põem em risco a própria continuidade das políticas públicas de saúde, desorganizando a atividade administrativa e 17
comprometendo a alocação dos escassos recursos públicos20. Em suma: o Judiciário quase sempre pode, mas nem sempre deve interferir. Ter uma avaliação criteriosa da própria capacidade institucional e optar por não exercer o poder, em auto-limitação espontânea, antes eleva do que diminui.
V. CONCLUSÃO

A judicialização e o ativismo são traços marcantes na paisagem jurídica brasileira dos últimos anos. Embora próximos, são fenômenos distintos. A judicialização decorre do modelo de Constituição analítica e do sistema de controle de constitucionalidade abrangente adotados no Brasil, que permitem que discussões de largo alcance político e moral sejam trazidas sob a forma de ações judiciais. Vale dizer: a judicialização não decorre da vontade do Judiciário, mas sim do constituinte. O ativismo judicial, por sua vez, expressa uma postura do intérprete, um modo proativo e expansivo de interpretar a Constituição, potencializando o sentido e alcance de suas normas, para ir além do legislador ordinário. Trata-se de um mecanismo para contornar, bypassar o processo político majoritário quando ele tenha se mostrado inerte, emperrado ou incapaz de produzir consenso. Os riscos da judicialização e, sobretudo, do ativismo envolvem a legitimidade democrática, a politização da justiça e a falta de capacidade institucional do Judiciário para decidir determinadas matérias.
20 Luís Roberto Barroso, Da falta de efetividade à constitucionalização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. In: Temas de direito constitucional, tomo IV, 2009, no prelo.
Os riscos para a legitimidade democrática, em razão de os membros do Poder Judiciário não serem eleitos, se atenuam na medida em que juízes e tribunais se atenham à aplicação da Constituição e das leis. Não atuam eles por vontade política própria, mas como representantes indiretos da vontade popular. É certo que diante de cláusulas constitucionais abertas, vagas ou fluidas – como 18
dignidade da pessoa humana, eficiência ou impacto ambiental –, o poder criativo do intérprete judicial se expande a um nível quase normativo. Porém, havendo manifestação do legislador, existindo lei válida votada pelo Congresso concretizando uma norma constitucional ou dispondo sobre matéria de sua competência, deve o juiz acatá-la e aplicá-la. Ou seja: dentre diferentes possibilidades razoáveis de interpretar a Constituição, as escolhas do legislador devem prevalecer, por ser ele quem detém o batismo do voto popular.
Os riscos da politização da justiça, sobretudo da justiça constitucional, não podem ser totalmente eliminados. A Constituição é, precisamente, o documento que transforma o poder constituinte em poder constituído, isto é, Política em Direito. Essa interface entre dois mundos dá à interpretação constitucional uma inexorável dimensão política. Nada obstante isso, ela constitui uma tarefa jurídica. Sujeita-se, assim, aos cânones de racionalidade, objetividade e motivação das decisões judiciais, devendo reverência à dogmática jurídica, aos princípios de interpretação e aos precedentes21. Uma corte constitucional não deve ser cega ou indiferente às conseqüências políticas de suas decisões, inclusive para impedir resultados injustos ou danosos ao bem comum ou aos direitos fundamentais. Mas somente pode agir dentro das possibilidades e dos limites abertos pelo ordenamento jurídico.
21 Um avanço civilizatório que ainda precisamos alcançar é o do respeito amplo aos precedentes, como fator de segurança jurídica, isonomia e eficiência. Sobre o tema, v. Patrícia Perrone Campos Mello, Precedente: o desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo brasileiro, 2007.
No tocante à capacidade institucional e aos efeitos sistêmicos, o Judiciário deverá verificar se, em relação à matéria tratada, um outro Poder, órgão ou entidade não teria melhor qualificação para decidir. Por exemplo: o traçado de uma estrada, a ocorrência ou não de concentração econômica ou as medidas de segurança para transporte de gás são questões que envolvem conhecimento específico e discricionariedade técnica. Em matérias como essas, em regra, a posição do Judiciário deverá ser a de deferência para com as valorações feitas pela instância especializada, desde que possuam razoabilidade e tenham observado o procedimento adequado. 19
Naturalmente, se houver um direito fundamental sendo vulnerado ou clara afronta a alguma outra norma constitucional, o quadro se modifica. Deferência não significa abdicação de competência.
Em suma: o Judiciário é o guardião da Constituição e deve fazê-la valer, em nome dos direitos fundamentais e dos valores e procedimentos democráticos, inclusive em face dos outros Poderes. Eventual atuação contramajoritária, nessas hipóteses, se dará a favor, e não contra a democracia. Nas demais situações, o Judiciário e, notadamente, o Supremo Tribunal Federal deverão acatar escolhas legítimas feitas pelo legislador, ser deferentes para com o exercício razoável de discricionariedade técnica pelo administrador, bem como disseminar uma cultura de respeito aos precedentes, o que contribui para a integridade22, segurança jurídica, isonomia e eficiência do sistema. Por fim, suas decisões deverão respeitar sempre as fronteiras procedimentais e substantivas do Direito: racionaliade, motivação, correção e justiça. Uma nota final: o ativismo judicial, até aqui, tem sido parte da solução, e não do problema. Mas ele é um antibiótico poderoso, cujo uso deve ser eventual e controlado. Em dose excessiva, há risco de se morrer da cura. A expansão do Judiciário não deve desviar a atenção da real disfunção que aflige a democracia brasileira: a crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade do Poder Legislativo. Precisamos de reforma política. E essa não pode ser feita por juízes.
22 Ronald Dworkin, O império do direito, 1999, p. 271 e s. 20

ANEXO ALGUNS FATOS E DEZ DECISÕES RELEVANTES EM 2008 I. ALGUNS FATOS RELEVANTES

1. Mudança na presidência

Em maio desse ano, chegou ao seu termo o mandato da Ministra Ellen Gracie na presidência do Supremo Tribunal Federal. Nomeada pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, foi a primeira a mulher a integrar a Corte e a presidi-la. Além da forte carga simbólica abrigada nesses dois fatos, o período foi marcado por avanços na modernização e informatização do Tribunal, e pela regulamentação de dois relevantes institutos introduzidos pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004: a súmula vinculante e a repercussão geral. Seguindo o sistema de rodízio por antigüidade adotado pela Corte, tomou posse o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, que foi igualmente nomeado para a Corte pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso. O novo Presidente é Professor da Universidade de Brasília (UnB) e, antes de se tornar Ministro, foi Procurador da República e Advogado-Geral da União.
2. Súmulas vinculantes

Ao longo de 2008, foram editadas dez súmulas vinculantes, que se somaram às três pré-existentes. Os temas foram os mais variados: uso de salário mínimo como indexador (Súmula 4); defesa técnica por advogado em processo disciplinar (Súmula 5); remuneração de praças no serviço militar (Súmula 6); não auto-aplicabilidade do art. 192, § 3º da Constituição enquanto vigorou (juros reais de 12%) (Súmula 7); prescrição e decadência do crédito tributário (Súmula 8); recepção do art. 127 da Lei de Execução Penal (Súmula 9); reserva de plenário para afastar incidência de lei ou ato normativo (Súmula 10); restrições ao uso de algemas (Súmula 11); taxa de matrícula em universidade pública (Súmula 12) e vedação do nepotismo nos três Poderes (Súmula 13). Algumas súmulas provocaram intenso debate público e 21
polêmica, não apenas por seu conteúdo, mas pela alegação de que o número reduzido de precedentes em relação a algumas delas daria ao STF, com sua edição, um papel quase normativo.
3. Repercussão geral

A operacionalização do instituto da repercussão geral promete um impacto significativo na qualidade e na quantidade das questões a serem julgadas. As estatísticas de 2008 já deverão exibir essa nova realidade, beneficiada por procedimentos como o plenário virtual, a devolução de recursos múltiplos e o sobrestamento de processos na origem. O controle da própria agenda e a redução contínua da carga de trabalho permitirão que o Tribunal progressivamente concentre sua atuação no papel de corte constitucional, julgando não mais do que algumas centenas de casos por ano. O passo seguinte deverá ser a eliminação de uma série de competências originárias e recursais que não se justificam e não têm par em nenhum país do mundo. No modelo que se está desenhando, o Supremo Tribunal Federal poderá se dedicar com mais vagar e visibilidade aos grandes temas que cabem a um tribunal constitucional: proteção e promoção dos direitos fundamentais, preservação das regras do jogo democrático, separação de Poderes, federação e outros seletivamente escolhidos pela maioria da Corte, de acordo com as circunstâncias de cada época.
4. Audiências públicas sobre interrupção da gestação no caso de anencefalia

Sob a condução do Ministro Marco Aurélio, relator do processo, foi realizada uma série de quatro audiências públicas, no âmbito da ADPF 54. Na ação se pede ao Supremo Tribunal Federal que interprete conforme a Constituição os artigos do Código Penal que tratam do aborto para declarar que eles não incidem na hipótese de interrupção da gestação de fetos anencefálicos. Foram ouvidas entidades religiosas, médicas, científicas, professores, parlamentares e Ministros de Estado. 22
Também estiveram presentes mulheres que passaram pela experiência de ter uma gestação nessas condições. Apesar do antagonismo das posições, o debate foi rico e cordial. A maioria das entidades religiosas que participaram das audiências se manifestaram contrariamente à possibilidade de interrupção da gestação no caso de anencefalia, inclusive a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família e a Associação Médico-Espírita do Brasil. A totalidade das entidades científicas, acadêmicas e de classe defenderam o direito de a mulher interromper a gestação, se assim desejar, aí incluídos o Conselho Federal de Medicina, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, o Conselho Federal dos Direitos da Mulher, a Escola de Gente e o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero – Anis. No mesmo sentido se pronunciaram os Ministros da Saúde, José Gomes Temporão, e da Mulher, Nilcéa Freire. O julgamento é esperado para o primeiro semestre de 2009.
5. A polêmica dos habeas corpus

Outro fato marcante do ano de 2008 foi a concessão de habeas corpus, pelo Presidente do STF, em casos de prisão temporária de personalidades conhecidas, cujos processos tiveram grande visibilidade. Vislumbrando abuso de poder nas medidas, o Ministro Gilmar Mendes – cujas decisões foram ratificadas pelo Plenário – deflagrou um debate que polarizou diversos setores da sociedade. Quando pessoas esclarecidas e bem intencionadas divergem com a profundidade verificada nesse episódio, é sinal que há dificuldades sérias na interlocução, pela ausência de premissas comuns. Do episódio é possível extrair uma conclusão: o sistema punitivo no Brasil – esse que começa no inquérito policial, passa pelo Ministério Público, pelo Judiciário, pela execução penal e deságua no sistema penitenciário – está desarrumado. É preciso repensá-lo do ponto de vista filosófico e normativo, rearrumá-lo nos seus valores, propósitos e conceitos. Todos os ramos do Direito vivem, em épocas diferentes, situações de crise. Esse parece ser o caso do direito penal e do direito processual penal no Brasil.23
II. DEZ CASOS JULGADOS EM 2008
1. Constitucionalidade das pesquisas com células-tronco embrionárias (ADIn 3.510/DF, Rel. Min. Carlos Britto)

Por maioria, a Corte julgou improcedente ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Procurador-Geral da República contra o art. 5º da Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/2205). O referido artigo, em seus diferentes dispositivos, autorizava e disciplinava as pesquisas científicas com embriões humanos resultantes dos procedimentos de fertilização in vitro, desde que inviáveis ou congelados há mais de três anos. Prevaleceu o voto do relator, Ministro Carlos Ayres Britto, no sentido de que não havia, na hipótese, violação ao direito à vida, nem tampouco ao princípio da dignidade da pessoa humana. A posição do relator, julgando a ação totalmente improcedente, prevaleceu por seis votos a cinco. Dos cinco votos vencidos, dois deles tinham, como traço central, a proibição de destruição do embrião (Ministros Menezes Direito e Ricardo Lewandowski). Os outros três, sem se oporem à pesquisa que comprometesse o embrião, entendiam dever ficar explicitada na decisão a existência obrigatória de um órgão central de controle dessas pesquisas (Ministros Cezar Peluso, Eros Grau e Gilmar Mendes).
2. Vedação do nepotismo nos três Poderes (ADC 12, Rel. Min. Carlos Britto; e RE 579.951/RN, Rel. Min. Ricardo Lewandowski)

Em ação declaratória de constitucionalidade ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros, o Plenário do STF declarou a constitucionalidade da Resolução nº 7, de 2005, do Conselho Nacional de Justiça, que proibia a nomeação de parentes de membros do Poder Judiciário, até o terceiro grau, para cargos em comissão e funções gratificadas. Entendeu-se que, independentemente de lei específica, a proibição deveria ser extraída dos princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade. Na seqüência, ao julgar recurso extraordinário oriundo do Rio Grande do Norte, no qual se discutia a validade da nomeação de 24
parentes de vereador e de vice-prefeito para cargos públicos, o Tribunal estendeu a vedação do nepotismo aos Poderes Executivo e Legislativo, aprovando a Súmula de nº 13, com o seguinte teor: "A nomeação de cônjuge, companheiro, ou parente, em linha reta, colateral ou por afinidade, até o 3º grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica, investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança, ou, ainda, de função gratificada na Administração Pública direta e indireta, em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal."
3. Prisão por dívida. Virada na jurisprudência (HC’s 87.585/TO, Rel. Min. Marco Aurélio e 92.566, Rel. Min. Marco Aurélio; RE’s 349.703, Rel. p/ ac. Min. Gilmar Mendes e 466.343, Rel. Min. Cezar Peluso).

No conjunto de casos identificados acima, o STF reviu sua antiga jurisprudência na matéria, relativamente à possibilidade de prisão do depositário infiel. Diante da circunstância de o Brasil ser signatário do Pacto de San Jose da Costa Rica, que restringe a prisão por dívida ao descumprimento inescusável da prestação alimentícia, passou a considerar derrogadas as leis que previam a prisão do depositário infiel, inclusive nas hipóteses de alienação fiduciária e de depósito judicial. O Tribunal se dividiu em relação à posição hierárquica dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos firmados pelo Brasil. Prevaleceu nos julgamentos a tese do Ministro Gilmar Mendes, que sustentou o status supra-legal, mas infraconstitucional de tais atos. Ficaram vencidos, no ponto, os Ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Eros Grau e Ellen Gracie. O Ministro Marco Aurélio entendeu não ser indispensável uma definição sobre este ponto para fins daqueles julgamentos e absteve-se de se pronunciar sobre ele.
4. Demarcação de terras indígenas na área conhecida como Raposa/Serra do Sol (Pet. 3388/RR, Rel. Min. Carlos Britto)
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O julgamento ainda não foi concluído, mas oito votos já foram proferidos. Por sua importância, merece referência. Na ação proposta por Senador da República pleiteou-se a declaração de nulidade da Portaria 534/2005, do Ministro da Justiça, e do Decreto homologatório do Presidente da República, que demarcaram as terras indígenas na área referida. Foram alegados inúmeros fundamentos, que incluíam vícios no procedimento, riscos para a segurança nacional, violação do princípio federativo, falta de proporcionalidade e conseqüências econômicas graves para o Estado de Roraima. O Relator, Ministro Carlos Ayres Britto, julgou improcedente o pedido e chancelou a demarcação contínua contida no ato impugnado, rejeitando a demarcação em ilhas, como requerido. Em seu voto, o Ministro Menezes Direito propôs procedência parcial, impondo “condições” que, na verdade, resultavam da interpretação de disposições constitucionais aplicáveis. Trata-se de território nacional e de terras pertencentes à União, que pode enviar as Forças Armadas e a Polícia Federal para desempenho de suas funções institucionais, bem como conserva a competência para licenciar atividades de exploração de potenciais hidráulicos e extração mineral, dentre outras. Esta posição, à qual aderiu o relator, contava com oito votos quando se deu o pedido de vista do Ministro Marco Aurélio.
5. Inelegibilidade e vida pregressa de candidatos a cargos eletivos (ADPF 144/DF, Rel. Min. Celso de Mello)

A ação foi ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e tinha por fundamento a interpretação do art. 14, § 9º da Constituição Federal, que prevê que lei complementar estabelecerá casos de inelegibilidade, levando em conta a vida pregressa dos candidatos. A Justiça Eleitoral de diversos Estados havia negado registro a candidatos condenados em processos criminais e administrativos, independentemente do trânsito em julgado dessas decisões. Essa posição não foi endossada pelo Tribunal Superior Eleitoral e, contra essa linha de entendimento, opôs-se a AMB. O STF julgou improcedente o pedido, sob dois fundamentos principais: a) havendo reserva de lei complementar, violaria a divisão funcional de Poderes decisão judicial que, na falta da lei, instituísse outras hipóteses de inelegibilidade; b) o 26
acolhimento do pedido vulneraria os princípios constitucionais da presunção de inocência e do devido processo legal. Votaram vencidos os Ministros Carlos Britto e Joaquim Barbosa.
6. Restrições ao uso de algemas (HC 91.952/SP, Rel. Min. Marco Aurélio).

O Tribunal, por unanimidade, anulou decisão condenatória proferida pelo Tribunal do Júri, em razão de o acusado ter sido mantido desnecessariamente algemado durante toda a sessão. Entendeu-se que, no caso, não havia uma justificativa socialmente aceitável para submeter o acusado a tal humilhação, vulneradora da dignidade da pessoa humana e do princípio da não-culpabilidade, inclusive por induzir nos jurados a percepção de que se estaria diante de acusado de alta periculosidade. Em desdobramento desse julgamento, foi editada a Súmula 11, com o seguinte teor: "Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado". Alguns setores criticaram a edição da súmula, sob o fundamento de que ela se basearia em um único precedente, quando a constituição exige reiteradas decisões (CF, art. 103-A).
7. Passe livre para deficientes no transporte coletivo (ADIn 2.649/DF, Rel. Min. Carmen Lúcia)

O Tribunal, por maioria, julgou improcedente pedido de declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 8.899/94, que concede passe livre no sistema de transporte coletivo interestadual às pessoas portadoras de deficiência, comprovadamente carentes. A autora da ação sustentou que a Lei afrontava os princípios da isonomia e da livre iniciativa, bem como o direito de propriedade. Em seu voto, a relatora, Ministra Cármen Lúcia, fez referência à Convenção sobre os 27
Direitos das Pessoas com Deficiência, assinada pelo Brasil, em 2007, e à preponderância do princípio da solidariedade, inscrito no art. 3º da Constituição. Também foi afastado o argumento de que haveria violação ao art. 170 da Constituição, uma vez que a livre iniciativa deve ser regulada nos termos da lei, considerando os demais princípios constitucionais da ordem econômica que também merecem amparo, como a dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais. Assentou ainda a Relatora que eventual desequilíbrio da equação econômico-financeira do contrato poderia ser sanado por ocasião da negociação de tarifa com o poder concedente.
8. Suspensão da Lei de Imprensa do regime militar (ADPF 130/DF, Rel. Min. Carlos Britto)

O Tribunal suspendeu, em medida cautelar, um conjunto de disposições da Lei de Imprensa (Lei nº 5.250, de 9.02.1967), editada ao tempo do regime militar. De acordo com o relator, Ministro Carlos Ayres Britto, tais previsões não eram compatíveis com o padrão de democracia e de liberdade de imprensa concebido pelo constituinte de 1987-88, que se apóia em dois pilares: a) informação em plenitude e de máxima qualidade; e b) transparência ou visibilidade do poder, seja ele político, econômico ou religioso. A cautelar foi referendada pelo Plenário, vencidos, em parte, os Ministros Menezes Direito, Eros Grau e Celso de Mello, que suspendiam toda a lei, autorizando a aplicação da legislação ordinária, civil e penal; e o Ministro Marco Aurélio, que não conhecia da ADPF.
9. Sigilo judicial e Comissões Parlamentares de Inquérito (MS 27.483/DF, Rel. Min. Cezar Peluso).

O Tribunal, por maioria, referendou decisão liminar concedida pelo relator, Ministro Cezar Peluso, em favor de operadoras de telefonia. O ato impugnado consistia em requisição, feita pela CPI instituída para investigar escutas telefônicas clandestinas, no sentido de que lhe fossem remetidos os dados referentes a 28
todas as decisões judiciais e mandados de interceptação telefônica cumpridos no ano de 2007. Por se tratar de informações protegidas por sigilo judicial, as operadoras ficaram no seguinte dilema: se não atendessem à requisição, sujeitavam-se à imputação de crime de desobediência; se fornecessem os dados, estariam violando segredo de justiça, sem autorização judicial, fato igualmente típificado como crime. A maioria entendeu que CPI não tem o poder de quebrar sigilo imposto a processo sujeito a segredo de justiça, havendo, na matéria, reserva de jurisdição. A decisão explicitou que, se a Comissão demonstrasse interesse, as operadoras deveriam encaminhar um conjunto amplo de informações explicitadas no julgado, mas preservando o sigilo das partes. Vencido o Ministro Marco Aurélio, que reconhecia o poder da CPI para requisição das informações pretendidas.
10. Isenção da Cofins sobre sociedades profissionais e revogação por lei ordinária (RE’s 377457/PR e 381964/MG, Min. Gilmar Mendes)

O Tribunal declarou legítima a revogação, por lei ordinária (art. 56 da Lei 9.430/96), da isenção do recolhimento da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) sobre as sociedades civis de prestação de serviços, que havia sido instituída por lei complementar (art. 6º, II, da LC 70/91). Reiterando orientação fixada no julgamento da ADC 1/DF, sustentou a maioria: a) a inexistência de hierarquia constitucional entre lei complementar e lei ordinária, que apenas se distinguiriam em razão da matéria reservada à primeira pela própria Constituição; b) a inexigibilidade de lei complementar para disciplina dos elementos próprios à hipótese de incidência das contribuições previstas no texto constitucional. Vencidos os Ministros Eros Grau e Marco Aurélio que davam provimento aos recursos, para que fosse mantida a isenção estabelecida no art. 6º, II, da LC 70/91. Em seguida, na apreciação do pedido de modulação de efeitos temporais, verificou-se um empate, com cinco votos a favor e cinco contrários. O Tribunal proclamou o resultado como desfavorável à modulação, por entender que esta somente poderia ser concedida por voto de dois terços dos membors da Corte, aplicando, por analogia, o disposto no art. 27 da Lei 9.868/99. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil 29
submeteu ao Presidente do STF um arrazoado sustentando que, na hipótese, por não ter havido declaração de inconstitucionalidade, a modulação poderia ser feita por maioria absoluta, devendo-se, portanto, colher o voto faltante. O acórdão ainda não foi publicado e, conseqüentemente, ainda não houve oportunidade para novo pronunciamento sobre o ponto.
3 Oscar Vilhena Vieira, Supremocracia, Revista de Direito do Estado 12, 2008, no prelo. 4 Gilmar Ferreira Mendes, Jurisdição constitucional, 2005, p. 146.