quinta-feira, 29 de julho de 2010

A IMPORTÂNCIA SOCIAL DO TRIBUTO E DA ÉTICA NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO PÚBLICA:



MIGUEL SLHESSARENKO JUNIOR
Promotor de Justiça – MP/MT
Mestre em Direito Constitucional pelo IDP


I – INTRODUÇÃO

Diuturnamente a imprensa assola a sociedade brasileira com notícias de corrupção generalizada na administração pública, de todos os níveis, quase sempre associadas ao desvio ou apropriação de verbas arrecadadas para, ironicamente, serem aplicadas em políticas públicas sociais.

Ao longo do tempo percebe-se que a corrupção destrói qualquer tentativa de melhoria social e distribuição justa da renda de uma nação, posto que para cada centavo arrecadado para implantação de políticas de interesse social, tem-se a impressão de que outro centavo foi desviado.

Poder-se-ia até pensar que a rapidez com que as informações são repassadas, via telefone, fax, internet, ou diante do grande poder que os meios de comunicação exercem em nosso quotidiano, faria com que a corrupção diminuísse progressivamente, diante da fiscalização popular e da mídia.

Princípios administrativos são criados e elevados à categoria de mandamento constitucional; legislações de combate à corrupção foram editadas (leis de improbidade administrativa, dos crimes contra a ordem tributária, e da lavagem de dinheiro); criam-se novos instrumentos de fiscalização, controle e limitação da administração pública, como por exemplo, a lei de responsabilidade fiscal; enfim, cerca-se a administração pública de inúmeros controles legais e populares e, mesmo assim, com tudo isso, o que vemos e constatamos: CORRUPÇÃO!

Tributos arrecadados com afinco do cidadão, que em sua ingenuidade esperava um mínimo de retorno social, acabam desviados, apropriados ou “perdidos” no extremamente complicado sistema da burocracia.

Toda essa verba pública perdida foi originariamente arrecadada da sociedade, por meio de impostos, taxas ou contribuição de melhorias, e para ela dificilmente retornará como benefício social, enquanto no exercício da função pública faltar um simples elemento subjetivo: ÉTICA.

Atuando em investigações de denúncias de corrupção ou deflagrando ações de improbidade administrativa, chega-se facilmente à conclusão de que falta, acima de tudo, muita ética no exercício da função pública.

O presente trabalho, longe de tentar esgotar o tema, tem por objetivo fazer uma análise da importância social do tributo e da ética no exercício da função pública, com algumas propostas concretas de atuação preventiva do Ministério Público Brasileiro, como meta de justiça social e garantia de dignidade da pessoa humana diante daqueles que, ironicamente, são os maiores agressores de direitos e causadores de prejuízos públicos: o Estado e o agente público ímprobo.

II – A IMPORTÂNCIA SOCIAL DO TRIBUTO

Consoante ensinamentos de Hugo de Brito Machado ,

“no estágio atual das finanças públicas, dificilmente um tributo é utilizado apenas como instrumento de arrecadação. Pode ser a arrecadação o seu principal objetivo, mas não o único. Por outro lado, segundo lição prevalente na doutrina, também o tributo é utilizado como fonte de recursos destinados ao custeio de atividades que, em princípio, não são próprias do Estado, mas este as desenvolve, por intermédio de entidades específicas, no mais das vezes com a forma de autarquia. É o caso, por exemplo, da previdência social, do sistema financeiro de habitação, da organização sindical, do programa de integração social, dentre outros”.

Toda essa atividade de arrecadação do Estado, que se perfaz por meio dos tributos, tem por objetivo, além de sua manutenção, a garantia de implantação e custeio de políticas sociais, com benefício direto à população marginalizada ou excluída, visando diminuir o abismo social existente.

A Constituição da República determina em seu primeiro artigo exatamente quais são os fundamentos da República Federativa do Brasil, formada pela União, Estados, Municípios e Distrito Federal, como Estado Democrático de Direito: a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; o pluralismo político.

Como se isso não bastasse, a Constituição da República fixa no seu artigo terceiro os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

E a própria Constituição da República coloca os instrumentos e as formas de serem concretizadas esses objetivos e fundamentos, por meio de políticas públicas, dedicando um capítulo inteiro nesse sentido, quando trata da Ordem Social, tendo como objetivo o bem-estar e a justiça sociais (artigo 193).

Essas políticas públicas são disposições acerca da seguridade social, da saúde, da previdência social, da assistência social, da educação, do meio ambiente, da família, da criança e do adolescente, do idoso e dos índios.

Assim, as políticas públicas sociais, expressamente previstas na Constituição da República, como finalidade, objetivo e, por que não dizer, dever do Estado para com a sociedade, são custeadas pela arrecadação dos tributos, que contribuem para a melhor (re)distribuição da renda e realização da justiça social.

Nesse último ponto, no que tange à (re)distribuição da renda, os princípios da capacidade contributiva, pessoalidade e progressividade dos impostos (artigo 145, §1º, da Constituição da República), permitem uma efetiva redução das desigualdades econômicas e sociais, uma vez que a cobrança progressiva do tributo é maior para os que detém mais renda, e menor para os de baixa renda, fazendo com que essa diferença seja revertida em atividades públicas essenciais destinados aos menos favorecidos, concretizando uma justiça fiscal em todos os seus termos.

Mesmo assim, apesar de todas essas garantias e instrumentos constitucionais, verificamos diuturnamente uma carência de efetiva aplicação de recursos públicos nas áreas sociais.

Constata-se com frequência em nosso país a cobrança excessiva de tributos sem o adequado retorno social. Nos países desenvolvidos a carga tributária apresenta-se elevada da mesma forma, mas a diferença marcante consiste no fato de que os cidadãos possuem um retorno social maior pelos impostos que pagam ao Estado.

Os índices de pobreza e indigência em nosso país são cada vez mais alarmantes, para uma nação que se coloca em pleno desenvolvimento, com índices de riqueza e potencialidades econômicas superiores a qualquer um dos sete países mais ricos do mundo.

A distribuição de renda e riqueza no Brasil é uma das piores do planeta: somos o quarto país do mundo com pior distribuição de renda, ficando atrás apenas da Suazilândia, da Nicarágua e da África do Sul. Enquanto os 10% mais pobres têm acesso a apenas 1% da renda gerada no país, os 10% mais ricos auferem 46,7% da renda total. Segundo economistas e estudiosos desse tema, a erradicação da pobreza no país não se dará apenas a partir da transferência de renda para os mais pobres, mas sim pela expansão das políticas sociais de educação, saúde, habitação e saneamento básico (necessidades básicas de qualquer ser humano), já que a pobreza não representa apenas uma insuficiência de renda, mas também a falta de acesso a diversos serviços .

Infelizmente, somente depois de muitos desvios de verbas públicas, corrupção incessante, malbaratamento do erário, comprometendo decisivamente a destinação social de todo o montante arrecadado por meio dos tributos, foi editada a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 04/05/2000), impondo limites de gastos, obrigações do administrador para com a sociedade e instrumentos eficientes de publicidade, fiscalização e execução orçamentária.

Trata-se de um verdadeiro código de ética para uma gestão fiscal responsável no País, determinando ao administrador público uma gestão por meio de planejamento de metas, disciplinando especificamente como deve ser elaborado o plano plurianual, a lei de diretrizes orçamentárias, a lei orçamentária anual, bem como a execução e o cumprimento das metas e políticas sociais previstas.

Aspecto extremamente positivo da Lei de Responsabilidade Fiscal é a obrigação de os administradores públicos em arrecadar os impostos de sua competência (artigo 11, LRF), pois a receita pública passa a ter uma valorização singular devendo-se tomar todas as providências para a arrecadação de impostos, objetivando maiores investimentos em melhorias sociais e na realização das políticas públicas essenciais.

Na prática, verifica-se que a grande maioria dos Municípios não fiscaliza corretamente a arrecadação dos tributos, ou acaba se omitindo em prol de interesses particulares, notadamente em pequenas cidades, onde o tráfico de influência é endêmico, ou a renda é muito baixa, a ponto de atividades informais e clandestinas serem incentivadas, contribuindo para uma pequena arrecadação dos tributos e, conseqüentemente, reduzido investimento social para a população.

É claro que enquanto não modificam a realidade e a mentalidade sociais, as normas aprovadas não passam de “Leis de papel”, mas já servem como poderoso instrumento social de fiscalização e controle dos gastos públicos, para que os tributos arrecadados sejam efetivamente gastos em prol da sociedade.

Portanto, ao tratarmos da importância social do tributo, tratamos incondicionalmente da finalidade e da razão de ser/existência do Estado, ou seja, como realizador da justiça social, apaziguamento dos conflitos e melhoria na distribuição da renda.

Ocorre, porém, que o Estado e suas funções são comandados, realizados e efetivados por meio de representantes eleitos ou agentes públicos, sendo que alguns destes colocaram de lado  ou talvez sequer tenham conhecimento de sua existência  um pré-requisito básico e elementar no exercício de sua função: a ética.

III – A IMPORTÂNCIA DA ÉTICA NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO PÚBLICA: MORALIDADE E EFICIÊNCIA

De todos os princípios legais e constitucionais inerentes à administração pública, a moralidade e a eficiência são os que mais se aproximam da noção básica de ética que todo e qualquer agente público deve observar no exercício de um cargo ou função.

Ambos, princípios consagrados constitucionalmente, têm por objetivo a fixação de padrões de conduta no exercício dos cargos e funções públicas, bem como o modo de aplicação adequada dos recursos arrecadados, diante da supremacia do interesse público.

Moralidade e eficiência na administração pública, decorrem de um princípio maior e mais abrangente, que é a probidade administrativa, impondo deveres no exercício de funções públicas e no trato com o erário e o patrimônio público.

O dever de probidade relaciona-se com a fiel e isenta utilização dos bens e rendas públicas; com a proibição de recebimento de vantagens pessoais em razão de suas funções; proibição de enriquecimento ilícito pessoal na realização de contratos públicos; vinculação incondicional a procedimentos e disposições legais; impossibilidade de defender interesse contrário ao interesse público no exercício de sua competência; vedação de divulgação de propostas e condições de licitação em favor de particular.

Consoante ensinamento preciso de Wallace Paiva Martins Junior , a probidade atende “a honestidade de meios e fins empregados pela Administração Pública e seus agentes, sublinhando valores convergentes à idéia de boa administração, de cumprimento das regras da ética interna da Administração Pública”.

A improbidade administrativa, desta forma, significa violação aos princípios da administração pública (como a probidade, a moralidade e a eficiência), com ou sem prejuízos ao erário e/ou enriquecimento ilícito do agente ímprobo, submetendo-o às sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa (Lei Federal nº 8.429/92), consoante determinações do artigo 37, §4º, da Constituição da República.

Assim, não basta ao agente público agir dentro da legalidade, é preciso mais, agir com absoluta probidade, com ética no trato com o patrimônio público, com moralidade administrativa, com honestidade na prestação de serviços e atividades públicas, e eficiência, buscando resultados úteis na concretização dos objetivos maiores do Estado.

De acordo com princípio da moralidade, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello , “a Administração e seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos. Viola-los implicará violação ao próprio Direito, configurando ilicitude que sujeita a conduta viciada a invalidação, porquanto tal princípio assumiu foros de pauta jurídica, na conformidade do art. 37 da Constituição”.

Assim, o administrador público não fica totalmente livre para o exercício de suas funções públicas, sob o manto da “discricionariedade”, mas vinculado ao exercício ético de sua função, com honestidade, probidade, boa-fé e também eficiência na utilização de bens e rendas públicas.

Quanto a esse princípio, o da eficiência, considera-se um dos pontos mais importantes da atuação ética do agente público, relacionado não apenas com o exercício da função pública, mas também com a busca da melhor aplicação das rendas obtidas em benefício do Estado e da própria sociedade, também envolvendo a questão da importância social do tributo.

Tal princípio, elevado expressamente à categoria constitucional desde a Emenda nº19/98, mas ainda negligenciado por alguns administradores públicos, é um dos melhores instrumentos de preservação e fiscalização da ética administrativa, bem como da justa e perfeita aplicação dos tributos arrecadados.

Hely Lopes Meirelles , em sua obra clássica, tratava a eficiência como um dos deveres do administrador público, ensinando com propriedade que o “Dever de eficiência é o que se impõe a todo agente público de realizar suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros”. Nessa mesma linha, é o entendimento de Maria Sylvia Zanella Di Pietro , pois o princípio da eficiência “impõe ao agente público um modo de atuar que produza resultados favoráveis à consecução dos fins que cabem ao Estado alcançar”.

Ubirajara Costodio Filho , explica que é preciso atribuir ao texto constitucional o sentido que lhe garanta a maior força normativa, diante da indisponibilidade dos interesses públicos, enunciando o conteúdo jurídico do princípio da eficiência nos seguintes termos: “a Administração Pública deve atender o cidadão na exata medida da necessidade deste e com agilidade, mediante adequada organização interna e ótimo aproveitamento dos recursos disponíveis”.

Alexandre de Moraes , em estudo conciso acerca da reforma administrativa, ensina que “O princípio da eficiência vem reforçar a possibilidade de o Ministério Público, com base em sua função constitucional de zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promover as medidas necessárias, judicial e extrajudicialmente, a sua garantia (CF, art.129, II)”.

Indiscutivelmente, todo e qualquer cidadão que necessite e dependa dos serviços de relevância pública  saúde, educação, segurança e previdência  tem o direito (e o dever) de exigir dos agentes públicos serviços de qualidade, prestados com o menor dispêndio econômico e temporal, existindo inclusive disposição constitucional prevendo a regulamentação das formas de participação do usuário na administração pública, permitindo reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços, bem como a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública (artigo 37, §3º, da Constituição da República).

Porém, o desperdício dos recursos, bem como a oferta ineficiente de serviços, com péssima qualidade, obviamente afronta o interesse público, podendo inclusive gerar prejuízos ao erário.

Assim, o administrador público ineficiente incorrerá em atos de improbidade administrativa, principalmente quando se verifica que de sua inércia ou negligência, a administração pública sofre perda patrimonial, ou que o mesmo simplesmente não está prestando os serviços de maneira ágil e econômica para a administração, sem alcançar resultados práticos almejados em lei, ou delineados pela mesma, devendo o Ministério Público zelar pela fiscalização desse princípio, diante das determinações constitucionais .

Em estudo acerca da Improbidade Administrativa, Fábio Medina Osório explica que “também ímprobo o agente incompetente, aquele que, por culpa, viola comandos legais, causando lesão ao erário, demonstrando ineficiência intolerável no desempenho de suas funções”.

E diariamente temos exemplos de ineficiência perante a Administração Pública e a sociedade, gerando prejuízos: são administradores que, no desempenho de suas funções, gastam desnecessariamente recursos públicos, sem obter nenhum resultado prático ou útil à sociedade, ou até mesmo à própria administração, gerando despesas injustificadas ao erário.

É preciso lembrar das palavras de Marino Pazzaglini Filho quando afirma que

“se é natural que a conduta dos agentes públicos esteja permanentemente sob a fiscalização popular, esta, porém, quase sempre é insuficiente para corrigir as distorções patrocinadas por condutas que, sem acarretar qualquer dano ao Tesouro e sem ensejar a configuração do enriquecimento ilícito, ferem profundamente os princípios éticos e jurídicos que presidem a Administração Pública”.

Portanto, a moralidade, incondicionalmente associada à eficiência, como elementos constitutivos do dever de probidade na administração pública, são princípios que devem e precisam sempre estar presentes na vida ética do exercício de uma função pública, por terem como objetivo final a concretização dos fins do Estado, pela correta e eficiente aplicação social dos tributos arrecadados e melhoria na (re)distribuição da renda, preservando-se a integridade do patrimônio público, e servindo como medida de prevenção contra a improbidade administrativa.

IV – FORMAS DE ATUAÇÃO PREVENTIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO

A Constituição da República determina, no seu artigo 37, §4º, que os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível

A plena eficácia deste dispositivo constitucional ocorreu com a edição da Lei nº 8.137/90, ao definir os crimes contra a ordem tributária e econômica, bem como da Lei nº 8.429/92, mais conhecida como a Lei de Improbidade Administrativa que, além de dispor acerca dos casos de improbidade e suas sanções, determinou como objetivo fundamental o integral ressarcimento do dano (artigo 5º).

Mas isso, na prática, dificilmente ocorre.

A atuação repressiva do Ministério Público, por meio da propositura de ações penais, de improbidade administrativa e de bloqueio provisório patrimonial do agente ímprobo, dificilmente alcançará o integral ressarcimento dos danos: poderá chegar próximo a isso, mas nunca será integral.

E isso pelo simples fato de que um dano ao patrimônio público acarreta um dano social tão difuso e irreparável, que se torna praticamente impossível o retorno integral dos prejuízos causados. Sem contar com as diversas artimanhas do agente ímprobo para camuflar seu enriquecimento ilícito e o desvio de bens e rendas públicas.

Com relação à sonegação fiscal não é muito diferente, pois o aparato policial do Estado ainda não dispõe dos meios e recursos necessários para a correta e perfeita investigação. São raros os casos de condenação criminal por sonegação de tributos, até mesmo porque os autores desses crimes são literalmente agraciados pela lei .

A potencialidade lesiva da sonegação fiscal e da improbidade administrativa é infinitas vezes maior que a prática individual de um crime, posto que a ausência de corrupção faz com que o Estado tenha mais numerário para aplicar em políticas públicas sociais, como educação, saúde, segurança e habitação, contribuindo para uma grande redução da criminalidade individual.

E tudo isso, ainda, sem contar com a notória morosidade do aparelho judicial, desde há muito abarrotado de processos, sem condições ainda de conferir a devida importância e prioridade nos julgamentos dos crimes de sonegação fiscal e ações civis públicas por atos de improbidade administrativa.

Com base nesses problemas concretos, passo às propostas eminentemente pessoais, de algumas soluções práticas:

4.1 NOTIFICAÇÕES RECOMENDATÓRIAS

É preciso usar e abusar das notificações recomendatórias, que tem por fundamento legal o artigo 6º, da Lei Complementar 75/93 do Ministério Público da União, aplicável subsidiariamente ao Ministério Público dos Estados (artigo 80, da Lei 8.625/93), objetivando a melhoria dos serviços públicos, bem como o respeito aos interesses, direitos e bens cuja defesa lhe cabe promover, não existindo, portanto, qualquer vedação legal ou material para a sua utilização.

Conforme Luiza Cristina Fonseca Frischeisen , a notificação recomendatória é o “instrumento de atuação do Ministério Público que tem o objetivo de prevenir responsabilidades da Administração e informa-las, sobre eventuais deliberações do Ministério Público (como a instauração de Inquérito Civil Público ou propositura de Ação Civil Pública), nos mesmos moldes das notificações previstas no art. 867 do Código de Processo Civil”.

Um dos efeitos mais salutares da expedição da notificação recomendatória é a prevenção de situações prejudiciais aos interesses públicos, advertindo a Administração sobre suas responsabilidades, bem como a configuração do dolo do agente público pelo descumprimento das disposições legais inerentes à sua atuação e competência.

Outro efeito extremamente eficaz consiste na solução de problemas extrajudicialmente, ou seja, sem precisar contar com a atuação do Poder Judiciário, fazendo com que os resultados práticos sejam alcançados com maior rapidez.

A Notificação da Administração Pública para a correta observância dos princípios constitucionais inerentes a sua competência e atuação, bem como para intensificação do combate preventivo da sonegação fiscal, por meio da fiscalização da arrecadação tributária, inevitavelmente trariam resultados mais concretos e positivos, não apenas na atuação do membro do Ministério Público, mas principalmente para a sociedade.

4.2 FISCALIZAÇÃO INTENSA

O Promotor de Justiça precisa sair de seu gabinete, precisa enxergar horizontes que vão além da sala da Promotoria, do ambiente do Fórum, do auditório de audiências e do tribunal do júri.

Conhecer os problemas da comunidade que faz parte da Comarca onde atua, deve ser uma das primeiras providências do membro do Ministério Público, até mesmo como respaldo para cobrança de atitude das polícias civil e militar, dos conselhos de fiscalização social e dos poderes públicos.

Saber da realidade social faz com que o Promotor de Justiça valorize seu trabalho perante a sociedade, e seja valorizado por esta, conheça as prioridades sociais pelas quais terá que lutar com maior afinco, bem como lhe trará maior consciência sobre seu importante papel como agente de transformação e modificação comunitária, tanto na área cível como criminal.

Diante disso, conhecendo as carências da comunidade, será mais preciso o direcionamento do trabalho para fiscalização da administração pública, cobrança de aplicação dos tributos arrecadados e maiores investimentos nas áreas mais negligenciadas.

4.3 AUXÍLIO DO TRIBUNAL DE CONTAS

Um dos requisitos para ser aprovado no concurso público para o cargo de Promotor de Justiça é a formação no curso universitário de direito, ou seja, não são exigidos conhecimentos sobre administração, ciências contábeis e economia.

Muitas vezes na investigação de improbidades administrativas e sonegação fiscal, encontramos dificuldades para a constatação dos ilícitos perpetrados pelos agentes ímprobos, por falta de perícia técnica ou contábil.

O Tribunal de Contas, órgão constitucionalmente responsável pela fiscalização contábil das administrações públicas, precisa atuar de forma conjunta ou, pelo menos, fornecendo elementos e respaldo para uma atuação segura do membro do Ministério Público no combate à improbidade e sonegação fiscal.

Não poderia ser descartada, inclusive, uma atuação conjunta com a Secretaria de Estado da Fazenda e a Secretaria Municipal de Finanças, principalmente no que tange à prevenção da sonegação fiscal.

4.4 REALIZAÇÃO DE AUDIÊNCIAS PÚBLICAS

Imprescindível é a realização de audiências públicas, não somente com a comunidade, mas com os poderes públicos municipais (prefeitura e câmara), polícias civil e militar, professores da rede educacional, objetivando a esclarecimento das funções institucionais, debate de temas de interesse comunitário e social, bem como divulgação de informações para o pleno exercício da cidadania, como direitos e deveres perante a comunidade e o Estado, para melhor fiscalização popular.

Nessas audiências públicas é imperioso ressaltar sempre a importância da efetiva participação popular na fixação das políticas públicas, consoante determinações expressamente previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal e no Estatuto das cidades, a ser concretizada por meio do orçamento participativo, para melhor distribuição dos investimentos e rendas obtidas por meio do pagamento dos tributos.

4.5 FORMAÇÃO DE FISCAIS COMUNITÁRIOS

Proposta interessante a ser adotada como objetivo institucional do Ministério Público é a formação de “fiscais comunitários”. Trata-se de pessoas do segmento comunitário para quem o Promotor de Justiça passaria conhecimentos específicos acerca da cidadania e fiscalização dos Poderes Públicos, servindo de canal de transmissão e pulverização de conhecimentos entre a sociedade local, para melhor atuação institucional.

Com isso tanto a população como os membros do Ministério Público teriam vantagens concretas, pois a sociedade passaria a cobrar com mais afinco seus direitos sociais, repassando ao Promotor de Justiça denúncias efetivas de violações desses direitos, contribuindo para uma melhor e mais eficaz atuação.

Poder-se-ia começar pelos presidentes dos bairros do município, primeiro canal de acesso à comunidade, fazendo com eles uma espécie de treinamento sobre cidadania, direitos do consumidor, saúde pública, importância social da aplicação do tributo arrecadado, pagamento de seus impostos, educação, direitos dos idosos, das pessoas com deficiência, para que, de posse desse conhecimento, mesmo que superficial, eles sirvam de porta-vozes e como instrumentos de conscientização social.

O Promotor de Justiça, de certa forma, tem uma passagem rápida pela Comarca onde ele atua, posto que é natural da carreira as promoções e remoções para outras Promotorias.

Muitas vezes trabalhos de conscientização iniciam-se e, com a troca do Promotor de Justiça, tem-se uma quebra nessa continuidade, por motivos os mais alheios e pessoais, que não importam serem tratados aqui.

No entanto, é exatamente por essa razão, que poderiam ser formados os “fiscais comunitários”, pois os Promotores de Justiça estão em constante mobilidade dentro de sua carreira, mas as idéias de transformação social, de consciência sobre direitos e deveres permanecerão com a comunidade, independentemente da forma de atuação do próximo Promotor de Justiça que assumirá na Comarca, fazendo com que a própria população se torne fiscal permanente dos interesses da comunidade, levando rapidamente ao conhecimento do membro do Ministério Público denúncias acerca de violações desses interesses, contra quem quer que seja, para tomada de providências.


4.6 ESCLARECIMENTOS DOS DEVERES DO CIDADÃO

O Promotor de Justiça deve sempre repassar aos cidadãos de sua Comarca que estes não possuem apenas direitos ilimitados, mas sim deveres inadiáveis para com a comunidade, perante a família e com os poderes públicos.

É preciso conscientizar o cidadão que antes de fiscalizar a atuação da Prefeitura quanto à destinação dos tributos, o mesmo deve pagar corretamente seus impostos; deve cobrar a nota ou cupom fiscal da aquisição de produtos no comércio; deve valorizar as iniciativas públicas e participar das reuniões que tem por objetivo discutir a problemática de seu bairro e o orçamento participativo, conforme dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal e Estatuto das Cidades.

O membro do Ministério Público deve assumir o compromisso de esclarecer, de informar e, principalmente, de incentivar o exercício dos instrumentos legais de controle e fiscalização, por serem os maiores interessados nesse processo: usuários e beneficiários dos serviços públicos.

A população deve ter consciência de que uma efetiva cobrança dos poderes públicos, seja do prefeito municipal, seja dos vereadores, seja até mesmo dos presidentes de bairros  que servem como um canal direto de reivindicações da comunidade que representam  pode trazer uma série de melhorias para a vida social e coletiva, contribuindo para uma melhor aplicação dos recursos públicos e participação popular da gestão pública e fiscal, tornando-a responsável, com o concreto retorno social do tributo arrecadado.

Certamente, algumas dessas propostas de atuação do Ministério Público não são absolutamente inéditas, mas foram abordadas com o objetivo principal de ressaltar a importância do trabalho preventivo e conscientizado do Promotor de Justiça perante a sociedade que ele atua, sem qualquer tipo de exclusão do necessário e imprescindível trabalho repressivo.

V – CONSIDERAÇÕES FINAIS

A falta de um mínimo de ética (probidade) no exercício da função pública, em nossa opinião, é o mais grave de todos os problemas. E por um simples fato: a ética não se busca por meio de uma notificação recomendatória, muito menos pela propositura de uma ação civil pública.

É necessária muita conscientização social da comunidade, para energicamente fiscalizar os poderes públicos, pagar seus impostos corretamente, e escolher melhor seus representantes nas eleições, sob pena de jamais conseguirmos modificar o grave quadro de corrupção endêmica por que passa a administração pública nacional.

Os danos causados à sociedade pela sonegação fiscal e os atos de improbidade administrativa são muitas vezes irreversíveis diante da realidade por que passa a população carente, que necessita imediatamente de recursos e investimentos na área social. Mas a sua conscientização, em nosso pensamento, consiste num dos fatores decisivos para o sucesso do trabalho institucional do Ministério Público, seja preventivo ou repressivo.

A verdadeira justiça social e a dignidade da pessoa humana somente serão alcançadas com o combate incessante à sonegação fiscal e aos atos de improbidade administrativa. E cabe a nós, membros do Ministério Público Brasileiro, enquanto Promotores e Procuradores de Justiça, agirmos como verdadeiros guerreiros, cujo brasão deve ser a luta incessante contra tais práticas, até mesmo porque, como fiscais da Lei e agentes que atuam em defesa dos interesses coletivos, temos como missão constitucional não fechar os olhos a tais condutas criminosas, mas sim combatê-las, contra quem quer que seja.

Urge o tempo de, como verdadeiras águias, assumirmos o elevado compromisso de priorizarmos o combate preventivo da sonegação fiscal e da improbidade administrativa, contribuindo decisivamente para uma melhoria na (re)distribuição da renda, realização da justiça social e a garantia de dignidade da pessoa humana. Agir em contrário, significa ignorar a mudança histórica do papel do Ministério Público, deixando de lado toda a sociedade, que nos vêm como última trincheira de resistência nesta guerra social, contra a falta de ética no exercício da função pública e a ausência de retorno social dos tributos.

VIII – BIBLIOGRAFIA

ALMANAQUE ABRIL 2002 – BRASIL. São Paulo: Abril Editora, 2002.

COSTODIO Filho, Ubirajara. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política nº27. A Emenda Constitucional 19/98 e o princípio da eficiência na Administração Pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo, 10ª. ed., São Paulo: Atlas, 1999;

FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas Públicas: a responsabilidade do administrador e o Ministério Público. São Paulo: Max Limonad, 2000.

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 20ª edição. São Paulo: Malheiros, 2002.

MARTINS JR, Wallace Paiva. Probidade Administrativa. São Paulo: Saraiva, 2001.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro – 19ª Edição – São Paulo: Editora Malheiros, 1994.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo, 11ª. ed.: São Paulo, Malheiros, 1999;

MORAES, Alexandre de. Reforma Administrativa – Emenda Constitucional nº19/98 – Coleção Fundamentos Jurídicos – São Paulo: Atlas, 1999.

OSÓRIO, Fábio Medina. Improbidade Administrativa: observações sobre a Lei 8.429/92. 2ª ed. Porto Alegre: Síntese, 1998.



PAZZAGLINI FILHO, Marino; ROSA, Márcio Fernando Elias; FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Improbidade Administrativa: aspectos jurídicos da defesa do patrimônio público. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 1998.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

A POLÊMICA DO ABORTO E A ADPF N.54

Marcos Vasconcelos

Texto produzido em 2004




INTRODUÇÃO

Recomenda-se que ao estudo de determinado assunto preceda-se uma aná-lise da origem e da evolução do objeto da pesquisa. Conclui-se que o desenvolvi-mento do homem na Terra traz enfoques dos institutos por ele criados, e a história é sempre uma testemunha fiel.

A sociedade moderna retrata a evolução da comunicação intersubjetiva. Cresceu, sistematizou-se e evoluiu da célula única família. Por necessidade de so-brevivência, nas civilizações arcaicas as famílias uniram-se e formaram tribos. Es-paçadas em algum ponto histórico, por diversos motivos desenvolveram, entre si, a comunicação. A partir dela construíram tradições e costumes, criaram regras de convívio. Um grupamento de homens forma uma sociedade. Para as relações so-ciais evoluírem, a sociedade impõe condutas. O progresso social impõe condutas a serem aceitas ou reprimidas. A permanência do homem no mundo começa pelo primeiro instituto jurídico, a família. Nessa relação social que se inicia, mecanismos de comportamento são criados, sobretudo quanto à moral e à ética. Desse ponto se discutirá a polêmica do aborto, para que se extraiam conclusões em relação a abortos de fetos anencefálicos, num olhar sobre os direitos fundamentais da pes-soa humana e sobre o ordenamento jurídico pátrio, comparado às legislações so-bre o tema noutras sociedades e noutros Estados fundamentados em constitui-ções.

A melhor maneira para se começar a entender os problemas da moralidade do aborto (provocado ou voluntário) é lançar um olhar à história e refletir sobre o assunto, vendo quais posições emergiram dos séculos. É análise importante por-que problemas quase sempre derivam de discussões do passado, quer porque lhes dão continuidade, quer porque reagem contra eles. Ao mostrar as posições reflexivas que têm abordado o problema, a história pode demonstrar a evolução do tema e conceitos entre si antagônicos que contribuem para o posicionamento defi-nitivo sobre a questão, até surgirem novas teses em contradito à primeira, reformu-lando a verdade e traçando rumos.

Hodiernamente, no mundo globalizado, retransformado em aldeia pela lin-guagem da comunicação rápida e automatizada, torna-se inevitável a conclusão de que a sociedade moderna é o produto do que o enorme contingente populacional assimila dos meios de comunicação, embora continue sendo a família o instituto jurídico basilar da sociedade. Mudanças sociais ocorrem em transformações per-manentes. O progresso e a evolução acabam por transformar a tendência dos po-vos nas artes, nas tradições, nas culturas, nos costumes etc, porém o instituto jurí-dico família se mantém o mesmo. Não foi outra a visão do constituinte ao conside-rar essencial esse instituto, consagrando-o no art. 226, caput, da Constituição Fe-deral. Interesses de natureza exclusivamente privada, porém, são lançados sobre a sociedade, procurando alterar princípios naturais do ser humano, apesar de alguns serem desprovidos de um mínimo ético de raciocínio.

Nesse contexto, o direito natural precede a noção de Estado e traduz que as mudanças sociais relevantes devem ser consideradas pelo legislador, pelo intér-prete e pelo aplicador da norma jurídica, sem que se perca de vista a ética jurídica. O direito como ciência deve acompanhar as mudanças sociais de relevância e pro-ceder à necessária regulação da evolução social, sempre preservando a natureza das coisas.

Na busca da criação de novas teorias, o cientista se esquece de preservar o bem-comum, que só existe plenamente quando liberdade e igualdade reais predo-minam em todos os campos do conhecimento. Quando se concebe a liberdade, mas se tolhe a igualdade de oportunidades (ou vice-versa), viola-se um princípio do direito natural e não se atende às mais autênticas necessidades humanas.

Entre as práticas constatadas em sociedade, depara-se o jurista com o aborto.

Há quem de modo extremo defenda sua prática, enquanto outros a criticam com mesma intensidade. A melhor das análises jurídicas é a que procura atender a princípios gerais de direito, direito que é instrumento para servir ao homem e bus-car a pacificação social de forma equilibrada, balanceada nos limites da expectati-va da justiça. Masculino nenhum pode, ante sua ausência de experiência, explicar o que leva uma gestante a abortar. Somente mulheres que iniciaram uma gestação podem com fidelidade responder. Que leva pessoas a auxiliarem uma mulher a praticar aborto? Qual a condição do nascituro? É um ser humano? Tem direito à vida?

Sem cogitar exaurir esta polêmica intrínseca ao dia-a-dia brasileiro, este tra-balho traz anotações sobre tão destacado tema. Afinal, as conseqüências do abor-to sobre as vidas da gestante e do ser em formação são relevantes. Expõe a Orga-nização Mundial da Saúde – OMS, no Brasil se praticam 3% a 7% dos abortos pra-ticados no mundo. Por isto serão vistos os antecedentes históricos e feita a análise médico-legal do tema, incluindo-se posteriormente a antecipação do parto (para uns) e o aborto de fetos com anencefalia (para outros), para que se concluam e estabeleçam direitos de personalidade sobre a relação gestante-nascituro.


CAPÍTULO I

1. ASPECTOS HISTÓRICOS

1.1. O comportamento das primeiras sociedades

Na instituição família estão os primeiros traços sobre a matéria “A mais an-tiga de todas as sociedades, e também a única natural”. O aborto era diferente-mente tratado nas famílias arcaicas. Em várias, a prática era vedada, impondo-se castigos por vezes extremos a quem praticava aborto. Noutros clãs não se castiga-va, por aceitabilidade da conduta ou desinteresse.



1.2. A impunibilidade oriental e o direito romano

A impunidade ao aborto predominou nos sistemas das sociedades arcaicas. “O direito oriental tolerava a retirada prematura do feto do útero materno sem qual-quer sanção para a gestante ou o executor do ato” .

Na antiga Grécia, o aborto era geralmente permitido. Da maneira como A-ristóteles fala do aborto, pode-se deduzir que este não chocava nem o sen-so moral comum e que não existiam restrições jurídicas particulares. Uma situação análoga valia em Roma, onde o aborto não levantava problemas éticos e o direito era influenciado pela tese estóica do feto como pars visce-rum matris (“parte das entranhas maternas”). Se excluirmos breves perío-dos da história romana, durante os quais o aborto era considerado social-mente inconveniente, veremos que este era, na realidade, muito difundido em todas as camadas sociais e, em particular, entre as classes privilegia-das .

Aristóteles e Hipócrates, na antigüidade clássica grega, propunham o estudo avançado da matéria, criando parâmetros que originaram a embriologia, ramo da perinaltologia. A firme condenação hipocrática do aborto foi exceção no mundo an-tigo, dado ser muito difundida - e de várias maneiras - a prática abortiva, sobretudo utilizando-se propriedades farmacológicas específicas, aplicadas por mulheres que sabiam preparar poções para usar em ritos de magia e provocar abortamentos. Era discutível a eficácia dessas poções, que também provocavam efeitos colaterais à saúde da mulher.

Embora o direito romano antigo considerasse o feto integrante das vísceras da mulher, o aborto era vedado sem haver autorização da gestante. Considerava-se criminoso o executor do ato. Septímio Severo equiparou aborto a crime de vene-fício, sob alegação de prática ofensiva a quem seria o futuro pai. Segundo esse entendimento, frustrava-se o direito paterno à prole (D.47,II,4). Desejava-se a pro-teção da honra paterna e da incolumidade física materna, não a proteção do feto.

Se não fosse casada, a mulher podia praticar aborto. Excluía-se a proteção da honra paterna, mas se preservava a incolumidade física feminina, raciocínio depreendido porque o feto não representava mais que parte das vísceras da ges-tante. Por essa via, o uso comprovado de substâncias abortivas imputava ao réu a pena de trabalho escravo ou a de confisco. Em caso de falecimento da gestante, o agente seria condenado à pena de morte.

Nenhuma proteção existia em favor do nascituro.



1.3. O cristianismo e a mudança dos costumes

A mudança de mentalidade e costumes ocorreu com o cristianismo, marco fundamental que vetou categoricamente o aborto, por considerá-lo contrário à so-berania de Deus à vida humana e ao processo generativo . A primeira comunidade cristã (Carta aos Gálatas, 5,19-21), analogamente no Apocalipse do Apóstolo S. João (21,8), afirma que “o lago que arde com fogo e enxofre, o que é a segunda morte”, é o destino dos tímidos, dos incrédulos, dos fornicários, dos feiticeiros, dos idólatras e de todos os mentirosos, feiticeiros significando médicos-magos que in-cluíam no que produziam abortivas. Os padres começam a pregar. Insistem nas interdições citadas para caracterizar a superioridade do estilo de vida cristão ao pagão. A Igreja começa a reprimir a conduta abortiva.

Inspirado nas concepções aristotélicas, S. Thomás de Aquino estabelece a tese que distingue feto animado de feto inanimado, que a Igreja incorpora e defen-de. Conforme Thomás de Aquino, reprime-se o aborto se o feto for dotado de alma. O de sexo masculino é alma vivente após quarenta dias de concepção; o de sexo feminino, depois de oitenta dias. Não tardou para que se percebesse a dificuldade de se constatar os dias da concepção do feto. Para findar a polêmica, o papa Sixto V segue S. Thomás de Aquino e em 1585 fixa, independentemente da idade do feto, penas canônicas e seculares para o aborto, tratando-o como homicídio. Pas-sados três anos, o papa Gregório XIX atenuou as penas do direito canônico e no-vamente adotou, in totum, a teoria do feto animado.

Os anos se passaram, a Igreja abandonou a idéia distintiva de animação do feto e passou a orientar-se pela teoria concepcionista. Equiparou o aborto ao homi-cídio cruel de pessoa indefesa, mantendo pena de morte para o agente da conduta delituosa.

O mundo germânico previa a prática do aborto ora como feitiçaria, ora como homicídio especial. O Iluminismo equiparou o aborto ao homicídio, atenuando a pena à gestante que praticasse aborto em defesa da honra. Em 1791, o Código Penal francês isentou a prática abortiva por honra de qualquer pena. Com o tempo, aboliu-se pena de morte por praticar-se aborto.

Entendem-se, pois, duas vertentes básicas acerca do aborto: a primeira descriminaliza totalmente esse instituto, por vezes invocando o direito de cidadania plena da mulher, que possui o interesse individual mais legítimo para o caso ; a segunda propugna abrandar as penas, mantendo-se o aborto como delito, por ser matéria de interesse social. A tendência moderna é a fraca reprobabilidade social da conduta abortiva, atenuando-se a pena da gestante e agravando-se a dos de-mais participantes do ato .

A discussão sobre a prática abortiva permanece. Mantendo a posição da I-greja, logo após assumir o pontificado, o papa Bento XVI ratificou-a: “os cristãos devem ser contra decisões jurídicas e leis que autorizem o aborto e a eutanásia, considerados pecados graves,[...] Um católico será considerado culpado por coo-perar com o mal - e não poderá receber comunhão - se votar em candidato político a favor da eutanásia e/ou do aborto” .

Ramificações religiosas cristãs (luteranas, protestantes, batistas, presbiteri-anas, pentecostais e evangélicos) defendem esta doutrina da Igreja Católica.

CAPÍTULO II



2. FORMAS DE ABORTO E PREVISÃO LEGISLATIVA COMPARADA

2.1. O tema sob os pontos de vista psicológico, biológico, médico e médico-legal

Sabe-se que em qualquer fase da gravidez pode ocorrer morte ao feto, situ-ação que tipifica aborto. Para Garimond, Carrara, Bonnet e outros, a conceituação se dá com a morte do feto no útero. Garraud e Thoinot afirmam ser aborto a ação de expulsão prematura do produto da concepção .

Há autores que observam - que quando contendores discutem aborto - con-fiam saber o que significa o termo, o que não é assim. Nos últimos anos, a noção de aborto mudou profundamente. Boa parte da controvérsia resulta de que conten-dores não falam das mesmas coisas. Esse aspecto – acrescentam os que defen-dem a tese – aclara-se quando se considera aborto sinônimo de “interrupção da gravidez”, só podendo conseqüentemente dar-se após iniciada a gravidez.

Antes o fato não trazia problemas desse tipo. Aborto era intervenção sobre fases avançadas da gravidez. Hoje é sobretudo no primeiro trimestre. A primeira pergunta é: quando começa a gravidez? - No passado se considerava que a gravi-dez começava logo após a relação sexual. Hoje se prova que o processo é com-plexo, porque depois do ato sexual os espermatozóides empregam horas para su-bir às trompas de falópio e só então acontecer a fecundação, caso interceptem o óvulo maduro.

Já fecundado, o óvulo desce das trompas ao útero, onde permanece tempo-rariamente e, ao redor do sexto ou do sétimo dia da concepção, aninha-se na pa-rede uterina, num processo completado no 14° ou 15° dia. Há um lapso de tempo entre a relação sexual e a concepção e outro entre a concepção e o implante . É pela “janela temporal” que fica exposto o problema: a gravidez começa com a con-cepção ou com a nidação?

Favoravelmente a quem sustenta que a gravidez começa na nidação estão: 1) na linguagem do senso comum, o DIU é contraceptivo, e existe relutância em classificá-lo abortífero; 2) a mulher não percebe a eventual concepção, e do ponto de vista psicológico não há diferença entre concepção e contragestação; 3) somen-te com a nidação instaura-se relação biológica entre embrião e gestante, mudando fisicamente seu corpo; 4) óvulos fecundados não conseguem se aninhar e se per-dem (estimativa de autores = 80%), fenômeno que se tem interpretado como es-casso interesse da natureza para com os óvulos fecundados.

Retruca-se que não obstante a afirmativa, o alto “desperdício natural” de embriões não impediria que a gravidez começasse com a concepção, quando se formaria novo ser humano. Esse desperdício não seria assim interpretado, mas como “desgraça natural”, sem intervenção humana que justificasse os efeitos, pois a alta taxa de mortalidade infantil nunca justificaria infanticídios.

A réplica é consistente, mas se pode objetar que no momento da concepção existe uma pessoa cuja morte a sociedade tem o dever de impedir e de utilizar os meios para evitá-la. Da mesma forma, como se têm investido grandes recursos para salvar crianças, assim se deve fazer com óvulos fecundados. Uma posição coerente não ignora essa imensa “tragédia natural” e requer que logo se desenvol-vam pesquisas sobre o “desperdício natural” de embriões, que constitui a maior emergência sanitária a enfrentar com urgência . Compete esclarecer se o embrião é pessoa (ou não) desde a concepção, portanto, se aborto é ou não homicídio.

Coube à Medicina Legal fixar o critério da perinatalidade.

Considera-se perinatal o período entre a viabilidade fetal (vigésima oitava semana) e o sétimo dia subseqüente de vida, em que já se fala da existência do neonato. É imprecisa, portanto, a proposição acima. Não há como determinar a viabilidade aludida, pois há variações de acordo com o caso concreto: viabilidade precoce (até a vigésima semana), viabilidade intermediária (até a vigésima sétima semana) e viabilidade tardia (após a vigésima oitava semana) .

Distingue-se aborto espontâneo (natural) de aborto provocado (forçado): no primeiro, é aborto de causa, patológico ou obstétrico. Acontece por intoxicação ou acometimento de sífilis, nefrite crônica, diabetes, hipertensão etc; a outra, pela prá-tica de abortos repetidos, por hipertrofia placentária, endometrite etc.

Outros fatores podem causar aborto (forçar), dentre os quais: a) aborto físico por meio de calor, eletricidade, raios X e outros - acarretando a destruição fetal; b) aborto químico, por meio de intoxicação grave da gestante, com a introdução no seu corpo de substâncias inorgânicas e medicamentos; c) o mecânico, causado geralmente por traumas indiretos ou extragenitais, como a compressão do abdô-men; e diretos (injeções, dilatações, punções e deslocamento do ovo) . Interessa lembrar:

a) no aborto legal, consentido pelo ordenamento jurídico (embora tipificado como crime, há a inimputabilidade do agente) ;

b) o aborto criminoso, tipificado assim na legislação penal, é desprovido de causas excludentes da conduta;

c) o aborto eugênico revela possível o nascituro apresentar doenças graves, hereditariamente transmitidas;

d) o aborto econômico fundamenta-se na impossibilidade de a gestante manter seu filho, ao nascer;

e) o aborto social, cognominado livre, decorre da prática social; é considerado legal em alguns países, dada a inexistência de dispositivo que civilmente lhe incrimine ou reprima a conduta.


2.2. O quadro legislativo mundial sobre o aborto

Conforme indicado, há Estados que repudiam aborto e há os que toleram, chegando a adotar tal prática oficialmente.

O código penal soviético de 1955 tutelou a liberdade do aborto, estabele-cendo repressão sobre práticas consideradas ilegais. Isso não impediu que nos anos seguintes se mantivesse a elevada média de 75% de gestações interrompi-das.

A Islândia (art. 9° da Lei n. 25/75) e a Suécia (Lei de 14/06/1974) usaram o-rientação mais liberal, quando estabeleceram o aborto social. No caso da Islândia justificou a conduta possuir muitos filhos, dar à luz muitos filhos em curto espaço de tempo; a difícil situação financeira ou íntima da família; a idade avançada da mulher; a falta de desenvolvimento mental da mulher .

A lei italiana permite que se pratique aborto até o nonagésimo dia da gesta-ção, sujeitando-se a conduta, por razões econômicas ou sociais, à tipificação pe-nal, conforme se apresentar a hipótese (Lei n. 194, de 22/5/1978).

A lei italiana, assim como a francesa, acentuam que o aborto não deve ser praticado sob o pretexto de controle da natalidade (art. 13 da Lei francesa n. 75-77, de 17/1/1975). A Dinamarca prevê o aborto social (art. 4° da Lei n. 120/70) quando a gravidez for uma “carga” para a mulher. A locução usada é infeliz, já que é com-pletamente desprovida de sentido jurídico. Na Espanha, o legislador regulou o a-borto como crime em disposições relativas à interrupção do desenvolvimento do nascituro, sujeito passivo do delito, portador de vida humana independente .

Os Estados Unidos da América (com um aborto para cada três gestações, em média) inserem aborto nos estados-membros em que se admite essa prática, na categoria dos rights of privacy .Legislações latino-americanas coíbem, de modo geral, a prática do aborto. Integram essa conduta entre os delitos contra a pessoa. A lei chilena restringe a possibilidade de aborto provocado a gestante vítima de estupro, cuja gravidez decorreu desse ato criminoso. O código argentino veda o aborto, admitindo a impunibilidade do aborto sentimental (art.86). O legislador bra-sileiro foi o primeiro a estabelecer a isenção de punição da gestante pelo aborto, no Código Criminal brasileiro de 1830.

Atualmente, o diploma brasileiro tipifica aborto como crime em qualquer ca-so, isentando de punibilidade os autores nos casos de aborto terapêutico e produto de concepção do estupro. Contrariamente aos que propugnam ter a legislação pe-nal brasileira excluído do rol de crimes alguns tipos de aborto, na realidade não o fez, manteve tais atos como criminosos, e excluiu de punibilidade os considerados por estupro e os necessários. Quando em jogo a vida da gestante ante a vida do nascituro, tem a medicina de optar sobre quem sobreviverá. Prevalecerá a vida da mãe, sempre. Cabe a ressalva de que para estes dois tipos de aborto é necessário o consentimento da gestante .


2.3. A bioética e o aborto

2.3.1. Dos pontos de vista sociológico , psicológico e cultural

O polêmico tema do aborto provocado pode ser multiplarmente considerado, como alguns já citados. Além deles, cabe pequena reflexão sobre o fato com o o-lhar sociológico, para que se examine a incidência do fenômeno na clandestinidade outro na esfera legal; e para examinar as condições socioeconômicas que o favo-recem .

No que pertine aos abortos na Itália, de acordo com dados do Ministério da Saúde italiano, houve 160.532 interrupções de gravidez provocadas (IVG) em 1991, com redução de 3.3% em relação a 1990 e de 31.4% quanto à 1982 . Diz a mesma fonte ministerial, a mulher que recorre com mais freqüência a abortos mora no sul da Itália, tem 1° grau (30,2%), já passou dos 30 anos, é casada (62%) e mãe de um ou dois filhos. Não se ignore o fenômeno do aborto (clandestino ou não) pe-lo olhar da psicologia, que se interessa pelas motivações que escolhem a vida ou a morte . A psicologia pode sempre avaliar as repercussões psicológicas na mulher depois de um evento de aborto voluntário.

Do ponto de vista cultural, o aborto deve também ser examinado. Em cultu-ras ou subculturas, sua autorização ou a legalização é civilidade. Para outros, é sinal grotesco da cultura da morte.

2.3.2. O caráter bioético e o aborto

Para tratar deste aspecto, é fundamental que se analisem os resultados da biologia e da genética. Esta posição bioética deve servir de ponto de encontro para crentes e não crentes e para definir a linha da ética profissional do médico . No tratamento que a bioética dispensa ao tema, compete saber se o embrião humano - desde o momento da fecundação - é vida humana. Se o for, verifica-se-á se é eticamente aceitável suprimir ou interromper voluntariamente a gravidez.

Dessa resposta, simultaneamente da ciência biológica e da ética, dependem as repercussões legais e comportamentais da modernidade. A bioética examina sobretudo o comportamento do médico e de seus colaboradores diretos, embora se deva admitir que o problema nasce na família.

Outro caminho para se analisar a questão é o do plano dos valores objetivos e o da verdade objetiva, não se abordando a subjetividade. Toda escolha ética, é verdadeiro, pode ser considerada realidade objetiva. A pessoa pode ter atenuan-tes, pode estar em condição de ignorância, pode estar sendo forçada, obrigada a ser ajudada, até cometendo um ilícito moral, mas a realidade objetiva permanece a que é. Se cabe uma ajuda, deve ser moralmente dada na direção da verdade obje-tiva, para que a pessoa não repita o eventual erro cometido e seja prevenida todas as vezes que deva ser e dependa da responsabilidade de cada um .

2.3.3. Os olhares recém concebidos pela genética e pela biologia humana

A concepção humana não é mais hoje um mistério natural escondido atrás de paredes impenetráveis, ofuscado por sombras de dúvidas oriundas de imprecisas observações, ou envolvida por véus de ilusórios silogismos ou de sofismas enganosos. Essa realidade não pode ser hoje mistificada ao bel-prazer de quem dela trata. Mesmo que falte muito ainda a ser compre-endido e a ser pesquisado para um conhecimento cada vez mais preciso dessa realidade, como acontece a respeito de qualquer conquista do saber, as observações conseguidas até hoje são já suficientes para o esclareci-mento dos aspectos que nos interessam .

O primeiro dado incontestável, esclarecido pela genética, demonstra que no momento da fertilização, da penetração do espermatozóide no óvulo, os dois ga-metas formam a entidade biológica chamada zigoto, que carrega em si novo proje-to-programa individualizado, nova vida individual.

É uma observação comum a de que o primeiro evento na formação de um indivíduo humano é a fusão de duas células altamente especializadas, o oócito e o espermatozóide, por meio do processo de fertilização. Um pro-cesso altamente complexo no qual duas células extraordinárias e tecnologi-camente programadas, que constituem dois sistemas independentes, mas ordenados um para o outro, interagem, dando origem a um novo sistema. A uma primeira fase – favorecida por receptores característicos da espécie presentes na membrana externa dos espermatozóides e por enzimas pro-teolíticas e glicolíticas liberadas por partículas estruturadas presentes na cabeça dos espermatozóides, chamados acrossomos – segue-se a pene-tração da cabeça de um espermatozóide no citoplasma do oócito. Mal isso acontece e já tem início uma cadeia de atividades que indica com evidência que não são mais os dois sistemas que estão agindo independentemente um do outro, mas que se constituiu um “novo sistema” que começa a operar como uma “unidade” chamada precisamente de “zigoto” ou embrião unice-lular” . As duas respectivas células gaméticas têm em si um patrimônio bem definido, o programa genético, reunido em torno de 23 pares de cro-mossomos: cada uma das células gaméticas tem a metade do patrimônio genético em relação às células somáticas dos organismos paterno e mater-no. Esses dois gametas diferentes entre si, diferentes das células somáti-cas dos pais, mas complementares entre si, uma vez unidos ativam um no-vo projeto-programa, pelo qual o recém-concebido fica determinado e indi-viduado .

Sobre essa novidade do projeto-programa resultante da fusão dos 23 pares de cromossomos não existe a menor dúvida, e negá-lo significaria rejeitar os resul-tados certos da ciência.

2.3.4. O caráter humano do embrião

Uma vez que o desenvolvimento biológico não se interrompe e se realiza sem intrínseca mutação qualitativa, sem ser necessária uma ulterior intervenção causal, deve-se dizer que a nova identidade constitui um novo indivíduo humano, que desde o instante da concepção continua o seu ciclo, sua curva vital. A autogê-nese do embrião acontece de tal modo que a fase sucessiva não elimina a que precede, mas a absorve e a desenvolve segundo uma lei biológica individualizada e controlada. Mesmo quando ainda não se reconhece a figura humana, há cente-nas de milhares de células musculares que fazem bater o coração primitivo; há de-zenas de milhões de células nervosas que se reúnem em circuitos e se dispõem na formação do sistema nervoso de uma pessoa.

Essa afirmativa derruba a distinção entre ser humano e ser humanizado, um dividido do outro pelo aparecimento da figura humana; ou a outra objeção que se apóia na distinção entre ontogênese e filogênese. Partindo do evolucionismo, a teoria explica que na formação do indivíduo está concentrada a história da evolu-ção das formas de vida no mundo, em que o ser humano aparece por último e a humanização é precedida pelas formas de vida vegetal ou animal. No embrião e em seu desenvolvimento não se encontra em nenhum instante dinamismo biológi-co de tipo vegetal ou de ser indiferenciado de espécie deferente. O todo que apa-recerá no final (se por ele se entender nascimento ou vida adulta) estará causati-vamente e geneticamente presente no início, também em sentido individual . In-clusive, é elucubração inútil a incerteza dos juristas sobre a aplicabilidade (ou não) do conceito de pessoa nos primeiros estágios, quando se pensa pouco importar como se queira juridicamente defini-lo, pois o embrião já é o mesmo indivíduo em desenvolvimento que o a ser definido como pessoa.

Poder-se-á explicar melhor mais adiante o que diz respeito à questão da a-nimação simultânea ou da sucessiva, problema de natureza filósofo-especulativa que se torna irrelevante e contraditório diante da realidade da ontogênese. Para os opositores ao aborto, o caráter moral ou o imoral decorre da resposta a ser dada à pergunta única: o embrião é (ou não) pessoa desde a concepção? É necessário examinar atentamente essa pergunta. Embora óbvia, sua formulação é útil. Não se trata de problema comum ou habitual, análogo àqueles que se enfrentam na vida. É bastante peculiar, abrange temáticas difíceis e se faz indispensável precisar pre-liminarmente o seguinte:

a) o que se quer saber é se o embrião é uma pessoa em ato e não tanto se é uma pessoa em potência, pois quando se afirma que uma coisa X é potencial-mente uma determinada coisa Y, entende-se que X não é Y, mesmo se possui a capacidade intrínseca de se tornar Y; de igual forma, quando se diz que o bom es-tudante é um médico em potencial, quer-se afirmar não ser ainda um médico, mas ter potencialidade para se tornar um médico; ao se dizer que uma semente é po-tencialmente uma árvore, não é ela uma árvore, mesmo com capacidade de sê-lo e de vir a ser efetivamente, porque se realizarão as condições normais e favoráveis a seu desenvolvimento, decorrentes do início do processo teleológico, que leva a semente a ser árvore; ressalte-se que afirmar que embrião é pessoa é completa-mente diferente de afirmar ser uma pessoa em ato, pois o processo generativo im-plica transformações radicais: pessoas provêm de algo muito diferente do que são, significando reconhecer que semente não é exemplar adulto, mesmo se contiver em si a capacidade intrínseca de se autotransformar e originar um adulto ;

b) deve ficar claro que a posição de quem é contra o aborto pressuponha que o embrião seja uma pessoa em ato, não simplesmente vida humana, ser hu-mano, um humano etc, dado que na linguagem trivial são termos sinônimos, po-dendo pressupor-se correto utilizá-los e intercambiá-los, mas é exatamente nesse ponto que se apresenta a exigência de uma linguagem técnica rigorosa; os oposito-res do aborto normalmente afirmam que essas distinções são meros jogos de lin-guagem ditados pelo gosto das sutilezas dos abortistas ou para complicar coisas simples; é bom esclarecer as razões que determinam a distinção feita anteriormen-te .

No Ocidente, a pessoa goza de tutela e direitos especiais, situação que se justifica porque ela parece ter propriedades peculiares, difíceis de explicar analiti-camente; comporta algo inefável, normalmente captado com mais facilidade pelos poetas. Expressa Hamlet:

Que obra de arte é o homem! Quão nobre a sua razão, quão infinito pelas suas faculdades, quão expressivo e admirável por suas formas e por seus movimentos; quão parecido com um anjo por suas ações; quão parecido com Deus por suas capacidades de aprender .

A pessoa parece ter características que transcendem a natureza físico-orgânica, ficando acima do mundo natural. Essa particular transcendência justifica a especial tutela que lhe é atribuída. Até a incerteza dos juristas sobre a aplicabi-lidade do conceito de pessoa nos primeiros estágios torna-se inútil, quando se pensa pouco importar juridicamente defini-lo, pois o embrião é o mesmo indivíduo em desenvolvimento que será definido como pessoa. É, portanto, uma pessoa.

2.4. O início da vida

Há dificuldades no mundo científico sobre o início da vida humana.

Pelo relatório Warnock pode-se dispor do embrião humano para fins experi-mentais até o 14° dia pós-concepção, conforme Ethics Advisory Board (DHEW), Estados Unidos, 1979 (o 14° dia corresponde ao fim da implantação) . Entende-se que até esse ponto não há caráter humano no embrião, nem ele está subordinado à vida do adulto . Em 1984, a comissão Walter, na Austrália, repetia: “não mais de 14 dias”; depois desse estágio, a linha primitiva e a diferenciação do embrião sãoe-videntes .

A. Mclaren, membro do Comitê Warnock, disse em um de seus recentes: “o ponto em que comecei a ser indivíduo humano total e completo foi no estádio de linha primitiva, a formação do embrião” . O aparecimento da linha primitiva indicava que as células destinadas a constituir o embrião estão diferenciadas das que formarão os tecidos placentários protetores .

McLaren e Grobstein introduzem no estudo o termo pré-embrião, que indica o período da vida pré-natal humana entre o momento da fecundação e o apareci-mento da linha primitiva. Só nesse instante se pode evidenciar “uma entidade es-pacialmente definida que pode se desenvolver diretamente em um feto e, depois, em um recém-nascido” .

O que é sustentado por McLaren é retomado por Grobstein, que assegura que o pré-embrião humano tem um conjunto especial de características que o dis-tingue biologicamente do óvulo que o precede e do embrião que o segue. É geneti-camente um indivíduo; não morfologicamente.

Esse pensamento é seguido por Ford, que afirma: “O aparecimento da linha primitiva é o sinal de que se formou e começou a existir um só embrião pro-priamente dito e indivíduo humano. Antes desse estádio não teria significado falar de presença de um verdadeiro ser humano em sentido ontológico” .

2.4.1. O aborto e o nascituro

O Código Penal Brasileiro disciplina a matéria a partir do seu art. 127, quando tipifica aborto como crime contra a vida, fixando que “não se pune o aborto pra-ticado por médicos nos seguintes casos: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de con-sentimento da gestante ou, quando incapaz, do seu representante legal”. Assim a Constituição Federal de 1988 recepcionou do Código Penal de 1940 as matérias aborto terapêutico e aborto por honra.

O Código de Ética Médica Brasileiro, no capítulo pertinente à responsabilidade profissional, estabelece que ao médico é vedado descumprir legislação espe-cífica nos casos de transplantes de órgãos ou tecidos, esterilização, fecundação artificial e abortamento” . A legislação ética-médica utilizou-se da terminologia “abortamento” para designar o ato de abortar .

Sem embargo, há inúmeros abortos clandestinos realizados por médicos, mesmo diante da conduta delituosa descrita no art. 127 do Código Penal . Consi-deram-se: a) a atual fraca reprovabilidade social da prática abortiva (embora recen-te pesquisa da CNT dá 85% da população brasileira contra ao aborto) ; b) a cons-tatação de maior incidência de abortos nos locais em que mais se pune essa conduta; c) a mulher tem solução rápida para esse tipo de problema, sem considerar outros fundamentos relativos à incriminação, como religião, moral etc; d) há sem-pre acobertamento do aborto provocado; e) não existe programa efetivo de plane-jamento familiar e de prestação clara de informações sobre meios e processos an-ticoncepcionais previstos .

2.4.2. Os direitos da personalidade na análise do aborto

O direito natural norteia a aferição do bem-comum. Regula os princípios básicos da coexistência humana e dos valores ínsitos do homem (componentes ético-físico-morais da espécie). Direitos de personalidade precedem direitos de Estado e guardam estreita referência com o direito natural . A problemática do aborto inse-re-se na matéria, primordialmente como direito físico que possui a gestante de de-cidir a destinação de sua vida e de seu corpo. No foco dos princípios informadores da ordem jurídica importa ressaltar que o homem ocupa o centro do pensar norma-tivo; com ele, a vida humana. Daí existir o direito para construir o homem, não para destruí-lo. Os direitos fundamentais do homem estão inseridos nos Estados Demo-cráticos de Direito. Sobrelevam o direito à vida humana nos aspectos físico e psí-quico. Quando o direito dá proteção à vida humana, não se refere ao todo, mas a cada vida humana : “la vida es siempre la vida de cada uno, la mia, exclusivamente propia, individual, única, intransferible, incanjeable, insustituible.”

2.4.3. Os direitos da mulher

Afastada a tese romana de que o feto é só parte das vísceras da mulher, vem a pergunta: tem a mulher direito ao aborto livre? Quanto à indagação defende-se que “poderá o aborto ser condenado sob o ponto de vista moral, assim como o incesto, sem contudo ser apenado por lei, quando as razões da mulher forem maio-res do que sua natural aversão a ele”, em função do “senso de maternidade”. Quando o senso de abortar predominar sobre o de ser mãe, deverá a gestante ser ouvida em suas justificativas .

Alerte-se para a perspectiva futura da libertação total do aborto, ante a defe-sa irrestrita de alguns: “De uma coisa se pode ter certeza: mais cedo ou mais tarde o Brasil acompanhará os povos que toma por modelo e praticará a abertura para a legalização do aborto. O crime, que hoje é, amanhã deixará de ser, apesar de to-das as oposições. A questão é exclusivamente de consciência ", embora deva ser tratada sob a ótica jurídica sem distanciar-se o homem de sua natureza, sem des-prezar-se o direito natural** .

Ao dispor sobre o destino do feto, a mulher tem envolvidos: a) o direito à vi-da; b) o direito à integridade física; c) o direito ao corpo; d) o direito à honra . O direito à vida fundamenta os demais direitos da personalidade, porque de sua exis-tência depende (em regra) a dos demais direitos dessa categoria .

Ao tratar-se o abortamento, é evidente admitir-se que a mulher deve defen-der seu direito à vida de eventuais complicações que acarretam gravidez ou consti-tuem risco à manutenção desse único direito fundamental à própria vida. A questão aplica-se quanto ao aborto terapêutico, que significa somente conseqüência extre-ma de situação na qual a vida da gestante, bem fundamental de direito, encontra-se em xeque. O direito à integridade física assegura a higidez da saúde, sendo co-ibida a prática de atividades que exponham o titular dos direitos personalíssimos a risco de comprometimento da incolumidade individual.

A autolesão, não punível em princípio, é reprimida pelo direito do mesmo modo que a lesão corporal provocada por terceiro em função de danos externos e internos que provoque na vítima. Quando se trata de abortos, a situação é delica-da. Muitos são praticados sem auxílio médico ou até pela gestante, que por gravi-dez indesejada interrompe o desenvolvimento fetal, prejudica-o fisicamente. Auto-lesão e queda com intuito abortivo, compressão consciente do abdômen e ingestão de substância abortiva são hipóteses.

Mesmo nos chamados abortos legais, a ofensa desnecessária (ou excessi-va) à integridade física da gestante constitui ilícito e não se encontra em harmonia com a inteligência do art. 128 do Código Penal brasileiro, que versa sobre o aborto devidamente preparado e praticado pelo médico, consentido pela gestante. A dis-posição do corpo às técnicas abortivas sem a proteção dos direitos personalíssi-mos da própria gestante é, diante do exposto, condenável.

A vida humana compõe-se de corpo acrescido de espírito, que significa fôle-go de vida. Essa junção forma a personalidade tutelada pelo ordenamento jurídico pátrio, que ao fazê-lo bem discrimina a individualidade da vida e do direito individu-al a ela. É no mínimo condenável a disposição do corpo às técnicas abortivas, sem a proteção dos direitos personalíssimos da própria gestante.

Esses são os direitos físicos da personalidade da gestante, a serem obser-vados para análise do abortamento.

Comumente justifica-se o aborto sentimental em função de direitos ligados à reputação e à honra da gestante. O abortamento em face de estupro contra a mu-lher, que em decorrência veio a se tornar gestante (aborto sentimental), é permitido porque “seria inumano constranger uma mulher que já sofreu o dano da violência sexual-carnal a suportar também a gravidez, mesmo porque a ordem jurídica não pode se opor à remoção das conseqüências imediatas e imanentes do crime”, ante o flagrante estado de necessidade da vítima em ver definitivamente remediada a delicada situação .

Envolve o direito à honra noção de cunho objetivo (apenas a difamação, pois a calúnia somente se faria presente no caso de falsa acusação de crime cometido pela gestante, que não é o caso) e subjetivo (injúria) . O aborto sentimental não é punível desde que praticado por médico e preenchidos os requisitos de consenti-mento da gestante. O ordenamento pátrio encontrou-se em xeque ao se deparar com essa situação, dada sua complexidade ante os direitos do nascituro, que no caso passam a ser exceção à regra.



2.4.4. Os direitos do nascituro e o aparente conflito de direitos no aborto

A tese de que o nascituro é titular dos direitos de personalidade não é remo-ta. Há correntes doutrinárias sobre o assunto:

a) natalista (a personalidade inicia-se com o nascimento) nega qualquer di-reito de personalidade ao nascituro;

b) a da personalidade condicional (falsa concepcionista) apregoa que a per-sonalidade do nascituro se condiciona a seu nascimento com vida [con-dição suspensiva/não há o que se falar em aquisição de direitos];

c) concepcionista, cuja personalidade do nascituro independe de nascimen-to com vida.

Mais razoável é o posicionamento da doutrina concepcionista, que se encon-tra em harmonia com a evolução da ciência médica em torno do tema . Na verdade, o problema do aborto, cuja maior liberação tem sido defendida por alguns grupos sociais notadamente feministas e por alguns penalistas, deve ser acompanhado de uma reflexão quanto ao direito à vida, ou melhor, quanto ao direito de nascer, como direito privado da personalidade, o que não tem sido feito” .

O legislador civil pátrio consagrou que “a personalidade civil do homem co-meça do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro” (art. 4° do CC). Por este foco o nascituro é pessoa física em for-mação, titular de direitos desde a concepção, a se proteger a partir do útero materno , o Estado tutelando-lhe o direito, pois esse ser humano não tem forças para defender-se e persiste razão para que o Estado o defenda.

Cabe a pergunta: Quem negará ao nascituro o direito de ser alimentado e receber o amparo necessário de sua futura mãe, enquanto ele não conhece o mundo externo? A questão não se circunscreve à ética. Há direitos personalíssi-mos efetivos em favor do nascituro, conforme a norma supracitada.

Além de vida, saúde e integridade física do nascituro não se confundem com personalíssimos direitos da gestante. São direitos distintos (g.n.). O primeiro precede, porque não conta com a capacidade de exercício do direito, mas o adquire desde a concepção. Inexiste condição para aquisição da personalidade, mas o nascituro não possui o atributo da capacidade jurídica .


2.4.5. Quando se forma o nascituro?

da desde a fecundação e a presunção médica sob análise é relativa – entende-se que o direito do nascituro inicia-se com a fecundação do óvulo feminino, momento em que o novo ser existe e tem direito à tutela do Estado, por ter vida própria e dis-tante, dependente porém do organismo em que se encontra abrigado .

Explica-se assim porque o aborto foi inserido na esfera penal como crime contra a vida. Condena-se o delito em questão para a tutela da existência física do ser, pois há ser humano desde a concepção, com qualquer prognóstico de futuro e duração. Torna-se impossível conceber que um ser humano reproduza diferente-mente de um ser humano. Os direitos patrimoniais do nascituro submetem-se à regra da condição suspensiva, em sua plena eficácia . Com o direito à vida tutela-do, o nascituro é protegido na integridade física e no direito ao corpo, visando ao amparo à saúde e ao desenvolvimento de sua formação.

O aborto, destarte, deve continuar sendo crime, por constituir ofensa aos di-reitos da personalidade do nascituro. O aborto social e o aborto econômico, em que pese a vontade dos genitores e as condições econômicas da família, devem ser afastados, ante a nítida constatação da existência de um novo ser.

O acesso à educação e à informação social tornam-se imprescindíveis para prevenir práticas abortivas que constituam risco à saúde ou à vida da gestante, assegurar os direitos do nascituro e realizar políticas de planejamento familiar compatíveis com o interesse social. As exceções devem continuar sendo o aborto terapêutico e o que resultar de estupro, neste último caso também com consenti-mento da gestante e comprovado por ocorrência policial.

O progresso da ciência tem diminuído a incidência de abortos e salvo vidas de gestantes, com complicações sanadas por médicos que aplicam métodos mo-dernos de preservação das duas vidas, sem maiores gravames à interessada nem ao nascituro. Ao revés, problemas de saúde do nascituro podem ser solucionados mediante tratamento no útero materno, inclusive microcirúrgicos, sem comprometer a vida ou a saúde da futura genitora. Até transplantes de medula óssea são feitos com sucesso.

Não se pode ter como razoável aborto para tratamento de doença não letal à gestante. Seu estado de saúde, tutelado pelo direito subjetivo à integridade física, deixa de prevalecer ao direito à vida do nascituro, bem juridicamente mais relevan-te neste caso. Se fosse outra a hipótese, o direito à integridade física do nascituro submeter-se-ia ao direito à vida da gestante .

O aborto cometido em defesa da honra da gestante (aborto por estupro) é plenamente justificável. No aparente conflito de direitos da personalidade, temos o direito ao uso do corpo da gestante violado, bem como o seu direi-to à honra e à integridade psíquica (este último por vezes), em contraste com o direito à vida do nascituro. Ora, é extremamente traumática a situa-ção da gestante que, nesse caso, teria de esperar nove meses para dar à luz e cuidar da indesejada criança, fruto de uma violência física e moral, ao nascer com vida. Convém lembrar que o direito à vida é fundamento dos demais direitos personalíssimos, devendo, em princípio, prevalecer diante dos demais. Na realidade, por serem os demais direitos da personalidade (direito à integridade física e psíquica, direito ao corpo e suas partes desta-cadas, direito ao cadáver e suas partes destacadas, direito à voz, direito ao segredo, direito à honra e direito às criações intelectuais) decorrentes do próprio direito à vida, pode-se concluir que este direito possui germes dos demais, que lhe são dependentes. Assim, o constrangimento físico, a tortu-ra psíquica, o vexame social e pessoal ao qual se submeteu a vítima estu-prada significam redução de sua dignidade de vida. O direito à vida pressu-põe não apenas a existência do ser, como também o viver dignamente. Ca-so a gestante, no caso de estupro, se julgue ultrajada pela situação e, por que não dizer, marginalizada pela sociedade, poderá ela se socorrer dos préstimos médicos, para a efetivação do abortamento. Viver é imprescindí-vel; a vida digna, contudo, é direito e conquista diária das pessoas e dever constitucional do Estado .

CAPÍTULO III



3. O FETO ANENCÉFALO E O ABORTO

Introduz-se o tema informando sobre a polêmica que tem chamado a aten-ção da sociedade brasileira em todos os segmentos. Em 16 de junho de 2004 che-gou ao Supremo Tribunal Federal a "Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental" impetrada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saú-de. Pretendia a antecipação terapêutica do parto de feto anencefálico, termo criado em substituição ao aborto, afirmando que o procedimento não é abortivo.

O pedido baseava-se na hipótese da inviabilidade do feto na vida extra-uterina, alegando no direito as razões: preliminarmente, a legitimação da pertinên-cia temática e o cabimento da ADPF; no mérito, a violação dos preceitos funda-mentais enumerados: a) a dignidade da pessoa humana (em analogia à tortura); b) a legalidade, a liberdade e a autonomia da vontade; c) o direito à saúde. A causa petendi a Interpretação Conforme a Constituição .

Concedida a liminar do pedido pelo ministro Marco Aurélio Mendes de Frei-tas Mello, a decisão perdurou cento e doze dias, derrubada que foi pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal em outubro de 2004, tendo ocorrido vários partos tera-pêuticos no período. "O Estado de São Paulo" anunciou, em 29 de setembro de 2004, que desde a concessão da liminar (1° de julho a 29 de setembro) haviam sido feitos 24 abortos de fetos sem cérebro. Que naquele período, somente em Santa Catarina, Paraná e São Paulo foram “ao menos 16 casos”, informações do Dr. Thomaz Gollop, especialista em medicina fetal e professor da USP. O Instituto Fernandes Figueira, da Fundação Oswaldo Cruz, atendera seis casos, informações da Dra. Dafne Horowitz, que acompanha as gestações naquele Instituto.

Em Brasília, no Hospital Regional da Asa Sul, houve duas procuras. O médi-co Waldecir Bueno declarou ao jornal: “Fazemos a junta médica, analisamos e, se a mulher quiser, fazemos a interrupção”. E continua o jornal: “Por enquanto, mulhe-res que tiverem o diagnóstico, possível por meio de ultra-som no terceiro mês de gravidez, e quiserem antecipar o parto, têm o direito de fazê-lo em hospitais públi-cos (e privados por meio de planos de saúde). Ainda na matéria o Dr. Gollop a-crescentou: “muitos médicos não estão informados e ficam com medo. Mas a limi-nar autoriza os profissionais e protege a mulher, que não precisa se expor e ficar peregrinando pelos tribunais para obter autorização” .

Não obstante a derrubada da liminar pelo STF, em instâncias inferiores juí-zes e desembargadores concedem direito a aborto de fetos anencefálicos em deci-sões monocráticas, sem manifestação contrária do STF . Tal realidade perdura na consciência social, eleva o debate a nacional, e o próprio concedente da liminar demonstra interesse em ouvir a sociedade por meio de audiências públicas. Lan-çada a controvérsia, o tema sai da esfera do direito, onde se discutia, e passa a fazer parte do dia-a-dia dos diversos segmentos sociais. Começa sua discussão na sociologia, na medicina, na psicologia, na religião, na economia, na bioética, na filosofia etc, com pontos controversos em todos os campos.



3.1.1. A anencefalia: conceito

“Monstruosidade em que não há abóbada craniana e os hemisférios cere-brais ou não existem, ou se apresentam como pequenas formações aderidas à ba-se do crânio” . Por definição da literatura médica, a anencefalia é uma má-formação fetal congênita, que se dá pelo defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico .

Conhecida como “ausência de cérebro”, a anomalia significa inexistirem as funções superiores do sistema nervoso central responsáveis por consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade. Restam funções inferiores que controlam respiração, funções vasomotoras e medula espinhal , parcialmente. Como é intuitiva, a anencefalia é incompatível com a vida extra-uterina, sendo fatal em 100% dos casos. Na literatura científica ou na experiência médica não há con-trovérsias sobre o tema .



3.1.2. A probabilidade de vida extra-uterina do feto anencefálico

Embora haja relatos esparsos sobre fetos anencefálicos que sobreviveram al-guns dias fora do útero materno, o prognóstico é de algumas horas após o parto. Não há possibilidade de tratamento ou reversão do quadro, o que torna a morte inevitável e certa . Aproximadamente 65% (sessenta e cinco por cento) dos fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino . O exame pré-natal mais comu-mente utilizado para detectar anomalias resultantes de má-formação fetal é a eco-grafia .

A partir do segundo trimestre de gestação, o procedimento é realizado com uma sonda externa que permite estudo morfológico preciso, incluindo (e.g). a vi-sualização da caixa craniana do feto. No estado da técnica atual, o índice de falibi-lidade desse exame é praticamente nulo, de modo que seu resultado é capaz de gerar confortável (grifo nosso) certeza médica .



3.2. As diferentes visões do problema

Leciona o professor Luís Roberto Barroso, no deslinde da ADPF impetrada:

Uma vez diagnosticada a anencefalia, não há nada que a ciência médica possa fazer quanto ao feto inviável. O mesmo, todavia, não ocorre com re-lação ao quadro clínico da gestante. A permanência do feto anômalo no ú-tero da mãe é potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde da gestante e até perigo de vida, em razão do alto índice de óbitos intra-útero desses fetos. De fato, a má-formação fetal em exame empresta à gravidez um caráter de risco, notadamente maior do que o inerente a uma gravidez normal . Assim, a antecipação do parto nessa hipótese constitui indicação terapêutica médica: a única possível e eficaz para o tratamento da paciente (a gestante), já que para reverter a inviabilidade do feto não há solução .

Nota-se que o autor da ADPF cria nova forma de tratar o problema: em vez de aborto, insiste no neologismo "antecipação do parto", talvez para fugir do centro da polêmica. Tanto que assevera, a seguir, em sua peça, que “como se percebe do relato feito acima, a antecipação do parto em casos de gravidez de feto anencefáli-co não caracteriza aborto, tal como indicado no Código Penal. O aborto é descrito pela doutrina especializada como interrupção da gravidez com conseqüente morte do feto (produto da concepção)”. Vale dizer: a morte deve ser resultado direto dos meios abortivos, sendo imprescindíveis a comprovação da relação causal e a par-cialidade de vida extra-uterina do feto. Não é o que ocorre na antecipação do parto de um feto anencefálico. Nesses casos, a morte do feto decorre de má-formação congênita; é certa e inevitável, ainda que decorridos 9 meses normais de gestação. Falta à hipótese o suporte fático exigido pelo tipo penal.” Comenta o jurista:

Note-se, a propósito, que a hipótese em exame só não foi expressamente abrigada no art. 128 do Código Penal como excludente de punibilidade (ao lado das hipóteses de gestação que ofereçam risco de vida à gestante ou resultantes de estupro), porque em 1940, quando editada a Parte Especial daquele diploma, a tecnologia existente não possibilitava o diagnóstico pre-ciso de anomalias fetais incompatíveis com a vida. Não se pode permitir, todavia, que o anacronismo da legislação penal impeça o resguardo de di-reitos fundamentais consagrados pela Constituição, privilegiando-se o posi-tivismo exacerbado em detrimento da interpretação evolutiva e dos fins vi-sados pela norma .



3.2.1. No parecer do ministro José Néri da Silveira há a contraposição:

Diego Leon Rábago, in “La bioética para el derecho”, México, ed. Facul-dade de Derecho, Universidade de Guanajuato, 1ª ed., 1998, p. 207, ex-plica demonstrar a genética suficientemente que desde o momento mes-mo em que surge á vida o zigoto, já há um ser humano. Keith L. Moore, citado por Rábago, define o zigoto como a célula resultante da fecunda-ção de um óvulo pelo espermatozóide e acrescenta que um zigoto é “o começo de um novo ser humano”. Rábaro, no ponto, ainda esclarece que não se devem confundir as células germinativas, óvulos e espermatozói-des com o zigoto. Aquelas são originadoras, este é o originado. Noutro passo, complementa que, com o surgimento do zigoto, se inicia o proces-so contínuo do desenvolvimento do ser humano, o qual abrange a sua in-tegração orgânica e seu crescimento, conforme as determinações de seu código genético. Por virtude do fenômeno vital de divisão, crescimento e diferenciação celulares, o zigoto se converterá em proembrião, em em-brião, em feto, em criança, em jovem, em adulto e em velho. Como assi-nala, ademais, Rábago, enquanto tudo isso sucede por determinação do código genético, contido já no zigoto, as transformações que se operam são porém morfológicas: o embrião, o feto, a criança, o adulto e o velho. Trata-se do mesmo ser que passa por diversas etapas de desenvolvi-mento (op.cit. 207 e 208) .

O jurista explica:

Nessa mesma linha, a lição de José Afonso da Silva, in “Curso de Direito Constitucional Positivo”, Malheiros Editores, 19ª. Ed., 2001, pág. 200: “Vida no texto constitucional (art. 5°, caput) , não será considerada apenas no seu sentido biológico de incessante auto-atividade funcional, peculiar à ma-téria orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva. Sua ri-queza é de difícil apreensão porque é algo dinâmico que se transforma in-cessantemente sem perder a sua própria identidade. É mais um processo (processo vital), que se instaura com a concepção (ou a germinação), trans-forma-se, progride, mantendo sua identidade, até que muda de qualidade, deixando então de ser vida para ser morte. Tudo que interfere em prejuízo deste fluir espontâneo e incessante contraria a vida”. E noutro trecho ob-serva (op.cit., p. 201): “A vida humana, que é o objeto do direito assegurado no art. 5°., caput , integra-se de elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais). (...). Por isso é que ela constitui a fonte primária de todos os outros bens jurídicos. De nada adiantaria a constituição assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos. No conteú-do de seu conceito se envolvem o direito à dignidade físico-corporal, o direi-to à integridade moral e especialmente o direito à existência”. No mesmo sentido, Jacques Robert (“Libertes publiques”, Paris, PUF, 1980, p. 234), ci-tado por José Afonso da Silva, à sua vez, assere: “O respeito à vida huma-na é a um tempo uma das maiores idéias de nossa civilização e o primeiro princípio da moral médica. É nele que repousa a condenação do aborto, do erro ou da imprudência terapêutica, a não-aceitação do suicídio. Ninguém terá o direito de dispor da própria vida, a fortiori da de outrem, e até o pre-sente o feto é considerado como um ser humano”. Discorrendo sobre o di-reito à existência, na perspectiva constitucional, José Afonso da Silva a-crescenta (op.cit.., p. 201): “É o direito de não ter interrompido o processo vital senão pela morte espontânea e inevitável. Existir é o movimento es-pontâneo contrário ao estado morte. Porque se assegura o direito à vida é que a legislação penal pune todas as formas de interrupção até mesmo de tirar a vida de outrem em estado de necessidade da salvação da própria” .



3.2.2. O pronunciamento feito por autoridades contra o aborto de anencefá-licos e a experiência relatada por dois protagonistas de casos de anencefali-a. Do professor da Universidade Mackenzie, da UNIFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, Doutor Ives Gandra Martins:

No caso dos anencéfalos, em que a autorização para a realização do aborto - segundo decisão do meu caríssimo amigo e brilhante ministro Marco Aurélio de Mello – pode ser dada até o último dia da gravidez, está-se perante a seguinte e absurda situação: matar a criança no ventre materno, em mo-mento anterior ao parto, é permitido, não sendo tal ato de eliminação da vi-da considerado crime; já matar o anencéfalo um minuto depois do nasci-mento é proibido, e o ato é considerado criminoso.

José Renato Nalini, presidente do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, no programa Caminhos do Direito e da Economia, promovido pela Academia Inter-nacional de Direito e Economia (da qual o ministro Marco Aurélio de Mello é dos mais destacados acadêmicos), mostrou que nos casos de aborto legal, para ele e para mim a lei penal não foi recepcionada pela Constituição de 1988, que garantiu o direito à vida sem exceções. A interrupção da gravidez, teoricamente, pode ser realizada a qualquer momento, durante os nove meses de gestação, dependendo exclusivamente, da decisão da mãe. O que vale dizer, a mãe está, inclusive, auto-rizada a realizar uma cesariana e a jogar o indesejado bebê no lixo, para ali morrer, tal como ocorre nos abortários americanos.

Um último aspecto é de se realçar. A anencefalia pode ser parcial ou total, de tal maneira que, mesmo com os mais modernos equipamentos, não é possível garantir 100% de precisão diagnóstica, o que, de resto, acontece em todos os e-xames que dependem da habilidade do profissional que os realiza e elabora o lau-do médico. Segundo o depoimento de uma aluna minha, em seu caso foi diagnos-ticada a anencefalia, e esse diagnóstico, felizmente, estava errado. Trago esse as-sunto [...] para a reflexão dos 11 cidadãos brasileiros que decidirão se entre as grandes conquistas da civilização moderna está a permissão para transformar o ser humano em lixo hospitalar .

No artigo "Anencefalia x Liberdade”, no “Correio Braziliense”, Paulo Tomita-ga relata sua experiência de pai de um anencéfalo:

Após ter filho anencéfalo no ano passado, é com pesar que vejo como o tema tem sido tratado desde a recente decisão de um dos ministros do STF, na qual se assegura às mães o direito de dispor da vida daqueles que venham a gerar. É interessante notar como apenas de modo passageiro se faz referências a estas pequenas pessoas, ficando a tônica da discussão sobre um tal “direito à liberdade de escolha” dos adultos envolvidos no ca-so. Como se a gravidez correspondesse apenas a uma vida – à da mãe - podendo prescindir da existência do filho. Este enfoque parece ilustrar co-mo o egoísmo impera em nossa sociedade. Sempre tinha ouvido falar no amor da mãe por seus filhos como o mais excelso tipo de amor possível. E desde os antigos gregos, este costumava ser indicado, para todos, como um ideal a ser alcançado na relação com os demais. Hoje o que parece preponderar como meta é outra espécie de “amor”, verdadeiro culto religio-so, por uma triste caricatura de “liberdade”, entendida como absoluta falta de compromissos. Não mais se aceita nem mesmo o compromisso de se preservar a vida de um filho, se este não puder corresponder às expectati-vas de seus pais ou – o que é pior – da maioria da sociedade. Neste qua-dro fica claro que, para alguns, só se tem filhos para uma satisfação da au-to-estima, como parte de um projeto pessoal ou para que possam, de certa forma, divertirem-se” com as crianças, utilizando-os como se fossem um objeto qualquer. Se não há a perspectiva de que a criança venha a propor-cionar alegrias aos pais, então é melhor descartá-la o quanto antes – no ventre da mulher, de preferência, pois assim termina esta existência “insu-portável e sem sentido”! [...] Amigos, a criança já terá uma vida breve. Que saibamos respeitá-la. Posso assegurar, por experiência própria, que este caminho conduz a um crescimento grande no amor entre os cônjuges, e na capacidade de se doar aos demais filhos. Filhos que virão, com certeza, como veio para nós neste ano o pequeno Rafael – talvez a demonstração mais palpável de que não há qualquer “trauma” no caso, se os pais soube-rem agir com serenidade. Se realmente desejam ajudar aos que passam por tais situações, saibam tratar do tema com o enfoque prático que não distorça a realidade mais óbvia, querendo criar teorias para esconder uma vida ou afirmar cegamente que este filho nunca existiu. O problema de sa-úde, a má-formação da criança, é um fato que atualmente não se pode re-verter. A questão não está apenas no que se deve fazer durante a gesta-ção. O grande problema, para os pais – e para a mãe, em especial – é co-mo lidar com o fato ocorrido, depois deste período ter acabado. Porque não é possível se esquecer de um filho: ficará para toda a vida a recordação destes dias. E então, ou não era nem poderia vir a ser como se desejava que ele fosse; ou irá lembrar, com carinho e ternura, de que seu filho, que teve uma breve existência, foi sempre amado e respeitado. Amem seus fi-lhos. Garanto que vale a pena . *

Janaína da Silva César, que teve um filho com anencefalia, afirma:

"Quando tinha dezenove anos, em virtude de um namoro, engravidei; devido a circunstâncias afetivas fiquei sozinha. Por esse motivo enfrentei todas as questões familiares, a vergonha enfim, todo o constrangimento de uma gra-videz no fim da adolescência. Felizmente, não obstante todo o sofrimento, meus pais me acolheram. Três meses após, o pai da criança resolveu a-companhar-me numa ecografia: era o dia em que conheceríamos o sexo do bebê. Naquela oportunidade, a médica ecografista foi bastante cuidadosa ao informar-me sobre a anomalia que sofria meu filho, que era anencéfalo. De início a notícia assustou-me e eu, a princípio, não fui capaz de absorver a realidade, até porque nunca tinha ouvido falar em algo semelhante. Já naquele momento, a médica trouxe a possibilidade do aborto, mesmo não se mostrando muito favorável. No mesmo dia, à tarde, procuramos outro médico no hospital da Unimed, em Brasília e este me disse ‘Menina, pra que ter uma coisa que não presta?’ E continuou: ‘se fosse minha paciente eu te levaria agora para uma curetagem’. Mesmo atordoada, resolvi procu-rar uma outra médica particular, dando continuidade ao pré-natal. Mesmo diante da certeza de que não veria Thalles crescer (nome dado a seu filho, após ter constatado ser um menino), decidi ter o filho. Foi uma gestação normal. Era meu filho que estava ali. Eu o amei e ainda o amo. Ele nasceu às 13h do dia nove de julho de 2002. Veio ao meu colo, segurou meu dedo. Foi uma alegria. Ele viveu 21 horas. "

Janaína demonstrou ser uma pessoa feliz, realizada com a oportunidade de ter podido dar à luz Thalles, de quem recorda com amor e carinho, que (em suas palavras) “permanecerá vivo e amado em minha lembrança. Sou mãe de Thalles. Pude vê-lo e ter com ele ao nascer. Isto é motivo de orgulho e grande felicidade para mim” **.

Não obstante a derrubada da liminar pelo STF, em instâncias inferiores alguns juízes e desembargadores vêm concedendo o direito ao aborto de fetos a-nencefálicos, em decisões monocráticas.



3.2.3. Pronunciamentos de autoridades que defendem a tese do abortamen-to de fetos anencefálicos

Para o médico José Aristodemo Pinotti, a anencefalia é resultado da falha do fechamento do tubo neural, decorrente da interação entre fatores genéticos e am-bientais, durante o primeiro mês da embriogênese. A anomalia encontra alta inci-dência no Brasil: cerca de 18 casos para 10 mil nascidos vivos; a maioria do sexo feminino.

O reconhecimento de concepto com anencefalia é imediato. Não há ossos frontal, parietal e occiptal. A face é delimitada pela borda superior das órbi-tas que contém glóbulos oculares salientes. O cérebro remanescente en-contra-se exposto e o tronco cerebral é deformado. Hoje, com os equipa-mentos modernos de ultra-som, o diagnóstico pré-natal dos casos de anen-cefalia tornou-se simples e pode ser realizado a partir de 12 semanas de gestação. A possibilidade de erro, repetindo-se o exame com dois ecogra-fistas experientes, é praticamente nula. Não é necessária a realização de exames invasivos, apesar dos níveis de alfafetoproteína aumentados no lí-quido amniótico obtido por aminiocentese. A maioria dos anencéfalos so-brevive no máximo 48 horas após o nascimento. Quando a etiologia for bri-da amniótica podem sobreviver um pouco mais, mas sempre é questão de dias. As gestações de anencéfalos causam, com maior freqüência, patologias maternas como hipertensão e hidrâmnio, levando as mães a percorrer uma gravidez com risco elevado .

O professor Pinotti expressa concordância com a liminar do ministro Marco Aurélio de Mello e pelo fato de o assunto ter-se transformado em pauta para a im-prensa, o que para ele, “já ocorre há pelo menos dez anos nos países desenvolvidos que hoje, permitem, em sua legislação, interrupção da gravidez nesses ca-sos” . Releva que:

... a bem da verdade, que vejo, além da questão religiosa, uma razão ética e generosa em levar uma gestação desses fetos até o final: a doação de seus órgãos. Essa é também uma opção, mas, repito, sempre uma opção. Entendo essa discussão como dolorosa, porém necessária. Com o avanço acelerado da tecnologia, temos de refletir continuamente sobre inúmeros assuntos desse tipo, estabelecendo, com reflexão profunda, balizamentos éticos, morais e legais para cada um deles [...] Por isso é importante dar às mulheres e seus companheiros o direito de optar de modo informado .

O professor Luiz Flávio Gomes afirma que o Código Penal Brasileiro é bas-tante conservador em matéria de aborto, devendo-se muito provavelmente à influ-ência que setores religiosos exercem sobre o legislador. Que o processo de secu-larização do direito ainda não terminou. “Confunde-se ainda religião com direito”. No caso do aborto por anencefalia, isso se evidencia de forma exuberante. Para o professor Luiz Flávio Gomes não há razão séria ou razoável que justifique a não autorização do aborto, porque o feto não sobrevive mais de dez minutos depois de nascido. “A morte, de qualquer modo é inevitável”.

O ponto de partida do debate deve ser a norma da Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 4°, n.º 1), que diz que ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente. Quando, no entanto, há motivo sério e forte que justifique eliminá-la (esse é o caso, claramente, da anencefalia), não há como o direito não amparar essa situação. Andou bem o ministro Marco Aurélio em autorizar o aborto anencefálico. Fará muito bem o STF em de-finir com clareza essa questão, que é angustiante e causadora de muito sofrimento para a gestante, para a sua família, para os médicos etc. Aliás, não só o STF deve firmar posição inequívoca sobre o tema, também cabe ao legislador deixar isso evidente no Código Penal (...) Observe-se, de ou-tro lado, que a anencefalia não é uma situação excepcionalíssima no nos-so país. De cada 10.000 nascimentos, 8,6 apresentam tal anomalia. No Hospital das Clínicas em São Paulo, todo mês, são 2 ou 3 casos. Isso vem causando muita aflição para as pessoas envolvidas e também para os médicos, que muitas vezes ficam indecisos e perdidos, sem saber o que fazer. Dogma é dogma, direito é direito. O processo de secularização do direito (separação entre direito e religião) deve ser concluído o mais pronto possível. Resquícios da confusão entre eles devem ser eliminados. Bem sublinhou Luís Roberto Barroso, autor da ação no STF que pede o aborto anencefálico: “as leis não podem ser subordinadas aos dogmas religiosos ou à fé de quem quer que seja” ("O Estado de S. Paulo"(20.08.04), p. A 12) .

O professor Luís Flávio Gomes observa que os que sustentam, ainda que de boa-fé, o respeito à vida do feto, devem atentar que o que está em jogo é a vida ou a qualidade de vida das pessoas que se envolvem com o feto mal formado. Logo, a decisão pelo aborto deve levar em conta essa questão, mas se contradiz ao afirmar ter que ser a decisão da gestante respeitada - caso não queira, por questões religiosas e assim faz referência praticar o aborto. Assevera que o nascimento de um ser humano no planeta deve ser sempre motivo para comemoração, não para decepção. Para ele o nascimento, endossando a teoria dos abortistas, é motivo de alegria, o que nada tem a ver com o clima funesto do nascimento do anencéfalo.

Termina informando que praticamente todos os países desenvolvidos autori-zam o aborto por anencefalia, comparando a situação à de países em desenvolvi-mento que o proíbem. Assegura que o desenvolvimento de Suíça, Bélgica, Áustria, Itália, Espanha e França, entre outros, os faz diferentes de Paraguai, Venezuela, Argentina, Chile, Equador . Não se vê muita lógica nesse raciocínio, porque a vi-são de direitos humanos se descasa do desenvolvimento, pelo menos no que con-cerne à legislação.

CAPíTULO IV

4. A constatação da vida intra-uterina

Pelo até agora exposto, torna-se claro que no útero da gestante encontra-se vida humana concebida e em desenvolvimento. Volta-se aqui à questão: pode ser uma batata? um ser humano pode reproduzir senão um ser humano?

Embora constatada a grave anomalia existente no feto, após os exames médicos que confirmaram a anencefalia, não é plausível que se esqueça ali consistir vida humana ligada diretamente à da gestante e em pleno desenvolvimento. Cons-tatada a vida e em vista das referências doutrinárias de direito civil e de direito constitucional, não há como se deixar de reconhecer essa vida, bem como sua na-tureza humana no conceptus sed non natus, independentemente de quaisquer gra-ves anomalias que se apresentem durante o desenvolvimento fetal, não cabendo discussão sobre a provável duração desse ser humano, mesmo nos casos em que seja presumível sua breve existência na fase extra-uterina.



4.1. A tutela civil do nascituro

As controvérsias não pacificadas acerca de o nascituro ser ou não ser pesso-a, de ter (ou não) personalidade jurídica, tem sido uma constante na doutrina, com reflexos na jurisprudência, no tempo e no espaço .

4.1.1. Para o direito civil brasileiro, quando se dá o início da vida? E o da personalidade jurídica?

Voltando a 1916, época em que se elaborava o Código Civil Brasileiro, não se notavam grandes preocupações com os reflexos da biologia no direito, tendo em vista a obsolescência da tecnologia da época. Não obstante o panorama, o Código Civil se adequava ao conceito da defesa do nascituro, quando nele reconheceu o direito à proteção do Estado, ao estabelecer em seu artigo 4° que os direitos do nascituro (pessoa concebida, mas não nascida) estão resguardados desde a con-cepção. Reconhecidos e resguardados adequam-se ao direito, não a “direitos”; e não a expectativa de direitos. A norma, que é de eficácia plena, foi criada com a visão da plenitude de direitos. Há direitos e status reconhecidos ao nascituro desde a concepção e independentemente do nascimento com vida.



4.1.2. Conforme a legislação pátria, os principais direitos do nascituro são:

Primeiro, cabe ressaltar que o art. 4° do Código Civil dá ao nascituro a titularidade do primeiro direito, compatível com a circunstância que lhe é peculiar: estar no ventre da mãe. Independentemente da forma pela qual foi concebido (in vitro, pré-implantatório ou crioconservado), há direitos expressamente previstos pelo Có-digo; outros, não. Como exemplo dentre os últimos, o direito a alimentos. Entre os primeiros: o de ter um curador (artigo 1.779 do Código Civil), o de ser reconhecido como filho (parágrafo único do artigo 1.609 do Código Civil e parágrafo único do artigo 26 do ECA – reconhecimento pré-natal). Entre os direitos patrimoniais (mate-riais), o nascituro pode receber doação (artigo 545 do Código Civil) e tem legitimi-dade para receber herança (artigo 1.798 do Código Civil).

Alguns autores fazem confusão entre personalidade e capacidade. “A limitada capacidade jurídica de direito do nascituro é confundida com falta de personalida-de. Por definição, personalidade é a aptidão para ser titular de direitos, status e obrigações. Capacidade é apenas a medida da personalidade. Portanto, o ente dotado de personalidade é pessoa. Pode-se ser mais ou menos capaz, mas não se pode ser mais ou menos pessoa.

Os direitos não patrimoniais não são condicionais, com ênfase aos direitos da personalidade. Esses direitos não dependem do nascimento com vida. O reconhe-cimento do filho nascituro, a curatela, são atos jurídicos e negócios jurídicos exis-tentes, válidos e com eficácia desde a concepção. O nascimento, mesmo sem vida, atua, quanto ao nascituro e aos direitos não patrimoniais que lhe são reconhecidos, tal como a morte atua para os nascidos . Não há que se falar assim em “persona-lidade condicional do nascituro”. Ela existe desde a concepção.

Para se consolidarem, somente a adoção e a herança dependem do nasci-mento com vida. Estão sujeitas à condição resoluta do nascimento sem vida. Não estão subordinadas à condição suspensiva do nascimento com vida. O represen-tante legal do nascituro pode entrar na posse dos bens que herdou ou que lhe fo-ram doados desde a concepção, bastando-lhe a prova da gravidez. O Código de Processo Civil prevê a posse em nome do nascituro em seus artigos 877 e 878.

Art. 877. A mulher que, para garantia dos direitos do filho nascituro quiser provar seu estado de gravidez, requererá ao juiz que, ouvido o órgão do Ministério Público, mande examiná-la por um médico de sua nomeação.

§ 1° O requerimento será instruído com a certidão de óbito da pessoa, de quem o nascituro é sucessor.

§ 2° .....................................................

Art. 878. Apresentado o laudo que reconheça a gravidez, o juiz, por sen-tença, declarará a requerente investida na posse dos direitos que assistam ao nascituro.

Parágrafo único. Se à requerente não couber o exercício do pátrio poder, o juiz nomeará curador ao nascituro.”

A jurisprudência reflete as ações que são ajuizadas em favor do nascituro, talvez pela escassa literatura especializada. Há pouco tempo o tema cresceu em interesse, tendo em vista as novas tecnologias de reprodução humana assistida. Assim, a partir da década de 90, pode-se notar o aparecimento de mais litígios en-volvendo direitos do nascituro. Hodiernamente, com o crescimento do número de adeptos da denominada “teoria concepcionista” (que reconhece direitos desde a concepção, não somente a partir do nascimento com vida), tem aumentado o nú-mero de decisões em sede de jurisprudência em favor dos direitos do nascituro.

Nesse sentido a Súmula 491 do Supremo Tribunal Federal dispôs ser inde-nizável a morte do nascituro, em sentida evolução diante da jurisprudência clássi-ca, que negava esse ressarcimento mas admitia o pagamento de perdas e danos por causa de animais, com base na teoria aquiliana.

Obstaculizado o direito de nascer, cabível é a indenização por dano moral, uma vez que violado o direito à vida do ser em formação, cabendo a seus sucesso-res as perdas e danos, como direito próprio .

4.2. Reflexões sobre a morte

4.2.1. Fenomenologia do ser-mortal

O “saber-se” e o “sentir-se” mortal constituem o fundamento da experiência que o ser humano tem de si. É o conhecimento de seu fim que cada um tem com certeza - não semelhante a nenhum outro saber, pelo fato de sua irredutível di-mensão “afetiva” - que torna possível um discurso não sobre a morte, mas contra-riamente sobre a relação que o ser pensante mantém com sua mortalidade. Esse discurso é fenomenológico, sobre o apresentar a si o caráter finito de sua existên-cia, seu final.

A fenomenologia da mortalidade, ao contrário de outros discursos sobre a morte que se sucedem na história do homem, não promove nenhuma “superação” da morte, como não oferece transcendência suscetível de neutralizá-la, quer se trate da transcendência puramente biológica da vida universal, da mitológica, de um mundo dos mortos, da teológica, de uma eternidade divina ou da metafísica, de uma intemporalidade da verdade ou da relativista, a transcendência puramente antropológica do “tribunal” da história .

Isso não quer significar, porém, que a fenomenologia pretenda saber mais sobre a morte que a mitologia, a teologia, a metafísica, a antropologia e a biologia, mas propor a questão da essência daquilo que aparece, independentemente de crença ou opinião. Ao reduzir pura e simplesmente a morte ao fenômeno, a feno-menologia repete o gesto filosófico no que ele tem de próprio: abstém-se de pres-suposição que tenha origem nos diferentes domínios da cultura humana e se pro-põe a unicamente descrever a maneira pela qual o ser humano se relaciona com sua própria morte.

A morte não “se apresenta” em pessoa ao mundo e não se chega a um determinado olhar que nela consiga distinguir sua forma ou seu rosto. Parece eviden-te que a morte não pode constituir a “própria coisa” à qual a fenomenologia obriga a retornar. Não seria preciso ver na fenomenologia a descrição de um lado que importaria simplesmente ter-se em vista, mas, ao contrário, como Heidegger reco-nhecer que “É precisamente porque os fenômenos não são de início (e no mais das vezes não dados) que é necessária uma fenomenologia” , o que implica que o fenômeno-da-fenomenologia não se confunde, de nenhuma forma, com o que se entende habitualmente por esse termo e que não está presente no sentido em que estão as coisas “existentes”.

Há uma fenomenologia do outro que não mais aparece como tal, que não se pode deixar entrever, a não ser de forma indireta, e que é percebida. Torna-se cla-ro que a percepção não é percepção do só visível, mas simultaneamente do que não se vê e da qual ela é antecipação necessária, embora esse invisível sequer não se constitua em dado para ela, como é o caso de tudo que não está visível agora, mas pode ser visível ulteriormente ou jamais chegar a sê-lo, como a experi-ência dos outros, cujas vivências não serão jamais acessíveis às vistas. Nos dois casos, o invisível não é oposto absoluto ao visível, mas sua contrapartida secreta - pode-se dizer - sem o que não haveria visibilidade . A morte não é invisibilidade absoluta, mas em sua “irrealidade” está mais presente do que jamais o serão as coisas da vida real.

Para Heidegger, a morte, na medida em que “existe”, é a cada momento es-sencialmente personalíssima. Não há mais essência geral da existência, mas uma experiência intransferível do existir e do morrer a cada vez. Lévinas contra-argumenta Heidegger ao dizer: “Não podemos afirmar que a morte primeira não é a morte própria, mas a do outro?” , como o nada que é a morte poderia nos atingir a não ser pela morte do outro? Não será necessário reconhecer que o Daisen pode ter acesso a uma experiência da morte. O ser-com-os-outros é para Heidegger es-trutura da própria existência, não um estado de fato que faria supor a presença efe-tiva dos outros. Isso tornaria impossível qualquer relação com os mortos. Constata-se solidão, ausência efetiva dos outros; não o contrário de ser-com-os-outros, mas a experiência privativa daquela.


4.3. O luto

É exatamente a privação do outro que se experimenta no luto - notável ser-com-o-outro - dado que com a perda o morto fica mais totalmente presente para nós do que foi em vida. O “sentimento exagerado do meu”, do existir, não é incompatível com o ser-com-os-outros; ao contrário, é seu fundamento; já que se com-partilha com o outro, é o caráter intransferível da existência que separa abissal-mente um do outro. Se a experiência do luto é a de um autêntico ser-com-o-outro, não significa autêntica experiência da morte. Morte de pessoa querida é anúncio de minha morte. Condena-me a um abandono que pode ser vivido como a desapari-ção de todo Dasein, da capacidade de estar aí como a melancólica revelação da insignificância de nosso ser. Basta a falta de um ser afetivamente ligado, para que tudo pareça despovoado.

Pode assimilar-se essa experiência como o desmoronamento do horizonte de sentido que é o mundo. Não se pode pretender que seja aceitação da morte. Como Heidegger ressalta, se a morte do ente querido é perda irreparável, não é perda sofrida do outro que é desse modo tornada acessível. Tão longe quanto se possa acompanhar o outro em sua morte, esta nos escapa. Por mais assistido em sua agonia, cada um morrerá só. Quando choramos os mortos, é por nós mesmos que choramos.

Pois a experiência do luto, quer seja a morte de si mesmo na experiência do relembrar, ou da morte do outro na experiência de ser-com-o-defunto, já é em si mesma uma “substituição” da morte e uma “estratégia” destina-da a preencher essa “lacuna”, essa “ruptura”, essa absoluta descontinui-dade da temporalidade que é a morte. Na experiência do relembrar, faço, com efeito, ao mesmo tempo, a experiência de minha morte como o eu passado e de minha sobrevivência como o eu que se recorda; sou, ao mesmo tempo, morto e sobrevivente de minha própria morte, a qual se a-firma, então, no relembrar. De maneira idêntica, na experiência da morte do outro eu faço, ao mesmo tempo, a da ausência atual ou, na realidade, a do defunto que não responde mais, e a de sua co-presença comigo na “incorporação espiritual” que supõe luto .

É emblemático que Freud tenha-se manifestado com relação ao luto ressaltando o caráter dialético, visto que o ato simultaneamente consiste em conservar a vida do desaparecido, incorporando-a à nossa interioridade, e em considerá-lo morto, aceitando-se o fato de sobreviver a ele. Há em Freud misteriosa economia do luto que impulsiona o eu, posto em face da questão de saber se ele está dispos-to a partilhar o destino do morto, a decidir, fazendo adormecer suas satisfações narcísicas, renunciar ao objetivo de amor desaparecido, a fim de poder permanecer vivo . Pode-se pensar que “o que chamamos, com palavra um pouco corrompida, de amor, é por excelência que a morte do outro me afeta mais que a minha” , o que explica que se possa decidir morrer “pelo” outro, não morrer “em seu lugar”, porque conseguindo retardar o momento da própria morte é impossível libertar o outro da mortalidade. Pode-se dar ao outro um pouco de tempo, jamais a imortali-dade.

4.4. O morrer

Se ninguém pode atenuar ou anular a responsabilidade do outro sobre a própria morte, nem morrer pelo outro (no sentido estrito), morrer não é somente determinação extrínseca da existência, acidente da substância homem, mas atribu-to essencial deste.

A relação que o ser humano mantém com o morrer é constitutiva de seu próprio ser e inaugural quanto a suas outras determinações. É o que Heidegger conclui ao analisar da primeira vez do ser-para-a-morte, firmando que a certeza do dever-morrer é o fundamento da certeza que o Daisen tem em si, de modo que não é o cogito ergo sum (penso logo existo) que constitui a definição de existir do Dai-sen, ao contrário de sum moribundus (sou moribundo), destinado a morrer. A morte não mais pode aparecer como a interrupção da existência e seu fim de maneira externa, mas como o que constitui a relação do Daisen com o seu próprio existir, a que Heidegger chama existência.

4.5. Natalidade e finitude

Como foi até agora analisado, o ser mortal Daisen não é livre para se fazer finito, visto que, sendo lançado no mundo, no meio do existente e não encontrando a si na origem de seu próprio existir, ele é desde sempre finito. Porque o Daisen não é somente um existir para o fim que é a morte, é igualmente um existir para outro fim: o nascimento. Do ponto de vista existencial, o nascimento não é um a-contecimento passado, como a morte não é um acontecimento futuro do falecimen-to; mas o Daisen existe de forma nativa, como existe mortalmente em todo o decor-rer da vida, dure ela o tempo que durar. O Daisen abrange a existência como um sistema contínuo, que se pode denominar advindo anteriormente ao nascimento, primeiro fenômeno captado - e depois a morte, captação de outro fenômeno, man-tendo-se o sistema perene no mundo.


CAPÍTULO V

5. O paradoxo entre a vida e a morte; o nascer e o morrer.

Muito recentemente, tomei consciência de uma contradição inicial, sem dúvida arraigada no mais profundo do meu ser. Meu pai revelou-me bem tarde o “segredo do meu nascimento”. Não era uma criança da família real educada por ciganos, mas embrião condenado por sua mãe a não nascer. A vida de minha mãe exigia minha morte, minha vida ameaçava-a de morte. Eu não deveria ter nascido e nasci morto [...] minha mãe, vítima da epidemia da gripe espanhola de 1917, que quase a matara, sofria de uma lesão no coração, mas tinha escondido de seu marido que lhe era proibido ter um filho. Grávida uma primeira vez, ela tinha feito um aborto com uma abortadora, mas, da segunda vez, as plantas e os métodos abortivos não tendo sido eficazes, ela teve de se conformar com os riscos do parto, e a parteira advertiu seu marido no quinto mês de gravidez. O ginecologista disse que de qualquer forma ele salvaria a mãe. De fato, nasci semimorto, saí sentado, estrangulado pelo cordão umbilical, e foi preciso meia hora de palmadas no bebê suspenso pelos pés para que soltasse seu primeiro choro. Assim, fui rejeitado antes de ser amado, assassinado antes de ser adorado. Eu devia morrer para que ela vivesse, ela devia morrer para que eu vivesse. Viver de morte, morrer de vida, esta fórmula de Heráclito, que não parou de me atormentar desde que a conheci, exprime a tragédia desta gênese: minha mãe devia viver de minha morte e morrer por minha vida, como eu devia viver de sua morte e morrer por sua vida. E havíamos sobrevivido ambos por milagre. Eis, pois, o acontecimento inicial de minha vida: nasci na morte e fui arrancado da morte .' (EDGAR MORIN - "X da questão - o sujeito à flor da pele" - ed. artmed, 2003)



5.1. O direito de nascer para poder morrer

O paradoxo existente entre a vida e a morte e a morte e a vida torna-se claro no texto acima. Esta linha de raciocínio trás de volta a questão por outro foco, so-bre a vida, sua grandeza, o direito de nascer, de permanecer no mundo pelo tempo em que o nômeno permita, sendo então o ente agente a captar os fenômenos da vida e da morte, sem a necessária interferência de outro ser, senão de forma natural. Por analogia, o nômeno é a natureza.

Sobre o direito de nascer expressou-se Massimo Vari, Vice-Presidente Emérito da Corte Constitucional Italiana, em artigo de sua autoria publicado nos maio-res jornais em circulação no mundo, entre eles “A Folha de S. Paulo” (tradução de Carlos Fernando Mathias), quando se referiu ao tema do aborto de anencéfalos e a visão do STF. Vari mostrou-se indignado e perplexo com a decisão da concessão, à época, da liminar que provisoriamente garantiu o aborto de bebês anencefálicos.

Na oportunidade, aquela autoridade da Corte Constitucional Italiana expressou opinião a respeito dos princípios fundamentais dos direitos humanos:

De plano, observe-se que à primeira vista essa poderia parecer justificada – a perplexidade - por certo impulsionada por fatores emocionais advindos de casos dramáticos como o de que se trata – aborto de feto com anence-falia . Não se pode contudo ignorar princípios, que em um balanceamento de valores indubitavelmente delicado, devam-se considerar.

O primeiro, e em particular, o mais fundamental de todos os princípios, é o que se refere à vida. Na verdade, o direito à vida é o primeiro dos direitos do homem. Trata-se de um direito inalienável para o desenvolvimento de todo o povo livre e soberano: “o direito dos direitos, a liberdade das liber-dades”, como observa Antônio Baldassare, presidente emérito da Corte Constitucional Italiana. A propósito, gostaria de recordar as palavras de Norberto Bobbio, quando afirmava que “o direito do concebido apenas po-deria ser satisfeito permitindo-se o seu nascimento”. Tal direito deve ser reconhecido, também, aos homens e nascituros doentes. O direito à espe-rada vida, portanto, tem sua base na concepção.”


CAPÍTULO VI



6. Direito e moral e a teoria do mínimo ético

Por esta teoria, vários filósofos do fim dos IXX e XX e no XXI permanecem sustentando que a finalidade do direito é preservar o mínimo de moral indispensá-vel ao convívio social.

A teoria do ‘mínimo ético’ consiste em dizer que o Direito representa ape-nas o mínimo de Moral declarado obrigatório para que a sociedade possa sobreviver. Como nem todos podem ou querem realizar de maneira es-pontânea as obrigações morais, é indispensável armar de força certos preceitos éticos, para que a sociedade não soçobre. A Moral, em regra, dizem os adeptos desta doutrina, é cumprida de maneira espontânea, mas como as violações são inevitáveis, é indispensável que se impeça, com mais vigor e rigor, a transgressão dos dispositivos que a comunidade con-siderar indispensável à paz social .

Atualmente se nota com clareza a inaplicabilidade desta tese, na medida em que nem sempre o que é regulado pelo direito pode ser tido por Moral, consistindo, muitas vezes, em uma afronta ao próprio ordenamento. É o que se denomina imo-ral. Exemplos são imunidades formais de deputados e senadores, que lhes impe-dem a prisão, bem como instaurar-se processo criminal sem autorização de 2/3 dos membros da Casa a que pertençam, mesmo nos casos de crimes considera-dos comuns, que nada têm a ver com o exercício do mandato parlamentar.

Nem sempre o que é regulado pelo direito consiste num valor para a sociedade. É o que se denomina amoral. Nestes casos, a norma jurídica não encerra uma proteção a um bem que a sociedade considera indispensável, prescreve sim-ples regra de organização. São exemplos regras de trânsito, prazos processuais, modelos que os formulários públicos devem respeitar etc.

6.1. Semelhanças entre direito e moral

Pode-se apontar semelhanças entre o mundo do direito e o mundo da moral, sendo a principal delas que em ambos os casos está-se a lidar com normas que prescrevem condutas; tanto normas jurídicas quanto morais prescrevem condutas que objetivam dirigir as condutas intersubjetivas para atingimento de certas finali-dades.

Ambos têm caráter prescritivo, vinculam e estabelecem obrigações numa forma objetiva, independentemente do consentimento subjetivo individual. Ambos são elementos inextirpáveis da convivência. Se não há sociedade sem direito, não há sociedade sem moral. Não obstante, ambos não se confundem; marcar a dife-rença entre eles é das grandes dificuldades da filosofia do direito .


6.2. A coercibilidade

A primeira grande teoria que surgiu com intuito de estabelecer a principal di-ferença entre direito e Moral foi a da coação. O direito significava - para essa teoria que teve em Hans Kelsen seu precursor - a ordenação coercitiva da conduta hu-mana. Não demorou para tornar-se alvo de críticas, a começar pela observação fundamental de que há o cumprimento espontâneo do direito. Na verdade da dou-trina da coação há a verificação da compatibilidade do direito com a força, ense-jando o aparecimento de uma nova teoria que coloca o problema em termos mais rigorosos: a coercibilidade, segundo a qual o direito é a ordenação coercível da conduta humana. A diferença está apenas num adjetivo, mas é fundamental .

6.3. A heteronomia

Outro traço diferenciador dos dois institutos está na heteronomia. Enquanto o direito é heterônomo por ser imposto ou garantido pelo poder, mesmo contra a vontade de seus destinatários, a moral é autônoma, pois é imposta pela consciên-cia ao homem. Pode-se dizer, então, que o direito, se não observado voluntaria-mente, poderá sê-lo pela intervenção dos aparelhos policial e judiciário, o que não ocorre com a moral. Esta exige observância espontânea e voluntária de seus pre-ceitos .


6.4. A bilateralidade

Para Miguel Reale, o que distingue essencialmente o direito não está em nenhum dos dois atributos citados, mas na bilateralidade atributiva. Explica:

Imaginemos que um homem abastado, ao sair de sua casa, se encontre com um velho amigo de infância que, levado à miséria, lhe solicita um auxílio de cinco rublos, recebendo uma recusa formal e até mesmo violenta. Em seguida, a mesma pessoa toma um coche para ir a determinado lugar. Ao terminar o percurso, o cocheiro cobra cinco rublos. A diferença de situ-ação é muito grande entre o cocheiro e o amigo que solicitava a mesma importância. No caso do amigo, que pedia uma esmola, havia um nexo de possível solidariedade humana, de caridade, mas, no caso do cocheiro, temos um nexo de crédito resultante da prestação de um serviço. No primeiro caso não há laço de exigibilidade, o que não acontece no segundo, pois o cocheiro pode exigir o pagamento da tarifa. Eis aí ilustrado como o direito implica uma relação entre duas ou mais pessoas, segundo certa ordem objetiva de exigibilidade. [...] pensamos que há bilateralidade atributiva quando duas ou mais pessoas se relacionam segundo uma propor-ção objetiva que as autoriza a pretender ou a fazer garantidamente al-go .

Claras estão diferenças e semelhanças entre direito e moral, a partir dos princípios de coercibilidade, heteronomia e bilateralidade.

A coercibilidade do direito repousa na possibilidade da aplicação da sanção, em caso de descumprimento de determinado mandamento jurídico. Em diversos casos há a desobediência da norma jurídica, sem que a respectiva sanção venha a ser aplicada, como nos dois casos de excludente de punibilidade, extraídos do Có-digo Penal brasileiro, quando do aborto em caso de necessidade ou de defesa da honra, por ter sido a mãe vítima de estupro. Casos desse tipo são exceção à regra. Há que se entender que houve a incidência do ato delituoso, porém o próprio Códi-go, por motivo de força maior, prevê a imputabilidade do crime.

Poder-se-ia dizer que na moral também existe sanção. O desrespeito a uma regra moral pode levar o indivíduo a sanções sociais, ao remorso ou a uma desa-provação pública. Em se tratando da moral não existe possibilidade de se aplicar esta sanção por meio de força, tampouco a garantia de que será amorfa.

A heteronomia consiste na imposição do direito por meio do poder, mesmo que os destinatários da norma não o desejem. Na moral, a imposição deriva única e exclusivamente da consciência do homem, da sua autonomia, o que lhe confere traços de subjetividade e abrange toda a sociedade do ponto de vista espiritual. Deriva a ética como forma de comportamento do indivíduo perante outro ou peran-te a sociedade em suas várias formas e tradições culturais.


CAPITULO VII



7. A ética

Cabe conceituar a ética para que seja possível, após o entendimento da mo-ral e do direito, avançar neste trabalho.

É, em geral, a ética, ciência da conduta. Existem duas concepções fun-damentais dessa ciência: 1ª a que a considera como ciência do fim para o qual a conduta dos homens deve ser orientada, e dos meios para tingir tal fim, deduzindo tanto o fim quanto os meios da natureza do homem ; 2ª a que se considera como a ciência do móvel da conduta humana e procura determinar tal móvel com vistas a dirigir ou disciplinar essa conduta. Essas duas condutas se entremesclaram de várias maneiras na Antiguidade e no mundo moderno; são profundamente diferentes e falam línguas diversas. A primeira fala de língua ideal para a qual o homem se dirige por sua natu-reza, por conseguinte da “natureza”, “essência” ou “substância” do ho-mem. Já a segunda fala dos “motivos” ou “causas” da conduta humana, ou das “forças” que a determinam, pretende ater-se ao conhecimento dos fa-tos.



7.1. A ética do direito natural e a ética dos valores

Johannes Messner pensa que após a moderna ética dos valores deve-se considerar caduca qualquer fundamentação da ética na idéia de fim. Sheler julga que o contributo mais significativo de Kant está em ter rejeitado a idéia de fim, não lhe concedendo função na fundamentação da ética. Entende por ética teleológica o sistema de moral fundado num fim último que “avilta os valores de bem e de mal, reduzindo-os a meros valores técnicos subalternos daquele fim”.

Nicolai Hartmann, ao criticar a ética teleológica, acompanha Sheler. Opina: “Na ética teleológica há um desconhecimento básico dos valores morais; um des-conhecimento que radica precisamente na falsa identificação do valor moral com o valor das circunstâncias apetecidas pelo sujeito” .

Messner indaga por que os fins existenciais não são fins subjetivos da von-tade, mas fins objetivos da natureza. Messner concorda que “se deve rejeitar toda a ética que fala de fins bons e maus, pois os fins não são em si bons nem maus”. Tanto fins como esferas de valores com eles conexas são de si indiferentes. En-tende que Sheler não está tão longe de sua concepção como pode parecer, porque o valor não pode ser senão o que corresponde a uma inclinação instintiva.

Sheler fala de conexão dos valores com inclinações, preferências, amor. Se o conhecimento dos valores e a tendência para os valores comportam sempre refe-rência aos instintos, os valores essenciais para o conhecimento ético-filosófico de-vem estar fundamentados nos fins imanentes aos instintos corporais e aos espiri-tuais. Isto porque Sheler, na análise que faz dos valores, segue Aristóteles, o primeiro a falar nos graus dos instintos e dos fins. Messner crê que a consciência mo-ral pré-filosófica (original) conhece intuitivamente, nos princípios morais básicos e evidentes, os valores éticos fundamentais. A única ressalva que faz: constatada a possibilidade de erro na apreciação dos valores, o conhecimento dos mesmos requer um critério de verdade correspondente. Apontar esse critério é tarefa primor-dial da ética científica.

Com relação a Hartmann, Messner comenta que se pode convir também que o valor moral é na realidade o do ato em si radicado na boa vontade na medida em que ela determina a conduta do homem, conforme as exigências de seu ser essencial. Como se constata, as idéias fundamentais da ética do direito natural não podiam encontrar expressão mais incisiva do que as palavras de Hartmann: “A natureza está vinculada às suas leis; só ele (o homem) traz em si mesmo uma lei superior, e é com essa lei que ele cria no mundo, ou melhor, é através dela que o homem cria, tirando o não-ser para o ser aquilo que está apenas esboçado na sua identidade” .

A ética dos valores fracassou porque tomou como fundamento o conhecimento moral e não toda a natureza humana… tomou exclusivamente a apreensão imediata dos valores: a apreensão apriorística dos princípios, disse Messner.

H. Welzel conseguiu condensar as opiniões em litígio, principalmente quanto ao problema da ordem ético-jurídica da sociedade. “Na ética dos valores de Sheler e Hartmann – afirma Welzel – cumpre-se o destino, já manifesto em Platão e Lebnitz, de toda a doutrina idealista a respeito dos valores: não há nenhuma lei de preferência que nos permita deduzir uma decisão exata sobre situações reais e concretas, aqui e agora, a partir de entidades de valor gerais e apriorísticas” .

Messner diria com outra terminologia: a lei natural conduz o homem da realidade potencial para a realidade plena e atual do seu ser como pessoa, sendo que essa realidade plena já se contém delineada na essência da sua natureza .

Logo após a Segunda Grande Guerra, podia-se alimentar esperança de elaborar sob o aspecto ético-social o pensamento ético-filosófico dos valores exposto na obra grandiosa de Scheler e Hartmann, mas essa esperança não vingou. Dos princípios da ética dos valores não se extraiu mais nenhum estudo que tocasse as questões fundamentais e particulares relativas à vida econômica, social e política. Para que novos estudos lograssem êxito seria necessário demonstrar, segundo Messner, a possibilidade de se fazer tal estudo com base na ética dos valores e nos métodos que a caracterizam. Seria necessário um critério de verdade dos valo-res: somente um critério assim tornaria possível a elaboração científica das exigências objetivas dos problemas concretos da vida social e conseqüentemente os de ordem jurídica.


CAPÍTULO VIII



8. O egoísmo e sua evolução (o altruísmo alcançado)

Assim como, no direito, a força caminha para a justiça, o egoísmo evolui para o altruísmo. À medida que a vida eleva os indivíduos para altas especializações, reorganiza-os pelo princípio das unidades coletivas em unidades sociais cada vez mais complexas. A diferenciação dos tipos e das aptidões leva as criaturas a se afastarem numa seleção natural feita pela própria vivência, o que provocará um desaguamento no desregramento social - se não houver outras necessidades a aproximá-los - e outra força não os reorganizar em formas de conveniência em que a atividade de cada um possa obter maior rendimento. Isto faz com que a evolução produza o que Pietro Ubaldi denomina demolição progressiva do egoísmo . Essa demolição funcionaria como a que produzira a força, pois precisa de novo instinto coletivo de altruísmo, que constitui o cimento precioso que amalgama os impulsos da evolução. Ele domina enquanto o progresso o exige, depois se supera e se transforma ante novo progresso. Eis a explicação de como nasceram, num mundo de necessidades hostis e ferozes, os princípios de altruísmo e bondade, tão mortais para o “eu”, tão antivitais no sentido restrito, num momento em que se inicia uma ordem de vida que revoluciona todas as precedentes. Não é bastante afirmar-se serem duas leis sucessivas. É relevante e indispensável que se diga que a mais elevada é sempre mais útil do que a menos elevada.

A natureza, extremamente econômica e conservadora, não comete prodi-galidades gratuitas. Se as faz, é visando a utilidades coletivas a longo prazo. Assim nascem os altruístas do amor, a abnegação materna (g.n.), os heroísmos em defesa de um povo, de uma idéia. De modo que o altruísmo é apenas um egoísmo mais amplo. Tanto mais amplo quanto mais esteja dilatada a consciência individual e o campo que ela abarca. O primitivo vê somente seu pequeno eu e se isola no momento; não se sente viver nos tempos e na humanidade. Em sua miopia psíquica, isola-se em seu próprio bem pequeno, separando-se do bem coletivo. É absolutamente inepto para viver num regime de colaboração, em que a consciência mais evoluí-da tem necessidade de multiplicar-se .

No que Pietro Ubaldi denominou dilatação do egoísmo é que, sentindo-se uno com todos, acaba abraçando a todos no próprio cálculo hedonístico. Seria um agigantar-se da compreensão até que, como se fosse num abraço, acontecesse a união de todas as criaturas irmãs. A amplitude do abraço indica a amplitude da compreensão que Ubaldi denominou de processo de auto-eliminação das formas inferiores da evolução. Ubaldi fala não de um altruísmo abstrato, sentimental, irracional e sem utilidade, mas sólido e resistente, pois unitário. A lei não se manifesta como princípio abstrato, mas aparece continuamente como manifestação concreta, personificada, dos seres que em suas formas de vida representam os seus artigos.

O egoísmo é expressão de insuprimível força concêntrica e protetora das individuações. A luta contra tudo o que não é o “eu” é a primeira expressão e a prova da formação de determinado tipo de consciência: logo que assoma na vida, tem que se defender. Consciência e egoísmo do indivíduo, da família, do grupo, do po-vo, da raça, cada vez mais amplos; consciência de uma distinção absoluta entre o “eu” e o “não-eu”.

Altruísmo não significa renúncia, mas expansão de domínio; não é perda, é avanço. É a conquista de compreensão, ascensão da vida e progresso. Ressalte-se esse paradoxo para o estudo ora formulado. Quando um herói morre por sua nação, um mártir pela humanidade, ou quando um gênio se desgasta pela ciência, trata-se a tal ponto da ampliação do egoísmo que se torna impossível conceber mais. Pode-se dizer: sou a nação, a humanidade, a ciência; suas consciências unificaram tudo isso.

Para Ubaldi, até o animal irracional percorreu esse caminho; na fase de assimilação composta pelos instintos fixou esses altruísmos, “apenas egoísmos coletivos” , porque o animal realizou sua evolução social de forma mais simples, em seu significado mais evoluídas e estabilizadas que o ser humano. Cita o altruísmo da abelha que morre picando em defesa de sua colméia, porém não pica se está sozinha; produz o mel que - depois de sua vida breve - as operárias irmãs (que ela não conhecerá) comerão, assim como as que ainda deverão nascer; não sobrevive isolada, mesmo se tiver todo o necessário. No homem o instinto coletivo está em formação, na abelha está fixado e completo. Para o homem esse fato não é a expressão de uma necessidade imposta por um instinto definitivamente assimilado, está na fase criativa (a virtude) em que requer esforço e é sentido pela consciência. Se na abelha o ato se realizou na fase instintiva, subconsciente, espontânea, no homem só atinge a parte inicial de formação: fases heróicas, virtuosas, trabalhosas, conscientes. A necessidade de trabalho para a sobrevivência imporá a colaboração com vantagem para alcançar metas cada vez mais altas. De outra forma, o homem não as alcança. Os caminhos do altruísmo são paralelos aos da evolução moral .



8.1. Egoísmo &  altruísmo

Como  pode-se notar, o egoísmo é aqui tratado como uma forma primitiva do “eu” contra o “não eu”; há o deslinde do tema que, em evolução, transformará o egoísmo em altruísmo. Para a filosofia o tema encontra também outras formas de análise conceitual:

Quanto ao egoísmo:

Termo criado no séc. XVIII para indicar a atitude de quem dá importância predominantemente a si mesmo ou aos seus próprios juízos, sentimentos ou necessidades, e pouco ou nada se preocupa com os outros. Platão já achava que o “amor desmesurado por si mesmo” é a causa de todas as culpas do homem. Diz Kant: “A partir do dia em que o homem começa a falar em primeira pessoa, ele passa a pôr seu querido EU na frente de tudo, e o eu progride incessantemente, subrreptícia ou abertamente (por sofrer a oposição do EU dos outros)” (Antr. I, § 2). Aliás, antes de Kant, Adam Smith (Teoria dos Sentimentos Morais (1759) e os moralistas franceses tinham visto no EU uma das emoções fundamentais do homem [...] Kant distingue três formas de E.(egoismo). O E. lógico, de quem não acha necessário submeter seu próprio juízo ao juízo alheio; E. estético, que se satisfaz com seu próprio gosto; E. moral, de quem restringe todos os fins a si mesmo e não vê utilidade no que não lhe traz proveito. Além dessas três espécies de E., Kant distingue o E. metafísico, que responde negativamente à pergunta; “eu, como ser pensante, tenho razão de admitir, além da minha existência, também a de um todo de outros seres que estão em comunhão comigo?” (Antr. I § 2).



Quanto ao altruísmo:

Esse termo foi criado por Comte, em oposição ao egoísmo, para designar a doutrina moral do positivismo. No catecismo positivista (1852), Comte enunciou a máxima fundamental do A. : viver para os outros. Essa máxima, acreditava ele, não contraria indistintamente todos os instintos do homem, já que o homem possui, ao lado dos instintos egoístas, instintos simpáticos que a educação positivista pode desenvolver gradualmente, até torná-los predominantes sobre os outros. Com efeito, as relações domésticas e civis tendem a conter os instintos pessoais, quando eles suscitam conflitos entre os vários indivíduos, e a promover as inclinações benévolas que se desenvolvem espontaneamente em todos os indivíduos. Esse termo foi logo aceito por Spencer (Princípios de Psicologia, 1870-72), segundo o qual a antítese entre egoísmo e A. estaria destinada a desaparecer com a evolução moral e que haveria cada vez mais coincidên-cia entre a satisfação do indivíduo e o bem-estar e a felicidade do outro (Data of Ethics, § 46). Como se vê, o fundamento da ética altruísta é naturalista, porque apela para os instintos naturais que levam o indivíduo em direção aos outros e pretende promover o desenvolvimento de tais instintos .



8.2. O altruísmo materno

O significado de mãe é amplo, porém o Dicionário Novo Aurélio Século XXI informa racionalmente o seu significado : “mulher ou qualquer fêmea que deu à luz um ou mais filhos”. No segundo significado: “pessoa muito boa, dedicada, desvelada”. Talvez tenha o dicionarista esquecido de acrescentar em sua obra que a mãe é o ser mais altruísta de que se tem notícia. Seria a mãe o altruísmo personificado. Indiferentemente de ser para os filólogos o ser que dá à luz, o significado de mãe transcende a isso. O seu amor pelo filho na concepção. Para uns, é a gestante. Para muitos - e principalmente para ela - está ali a mãe. A mãe é portadora do amor, visto que pelo amor concebeu.

Na natureza, a defesa ferrenha da fêmea a seus filhotes demonstra que o amor existe até instintivamente. Sem a defesa daquela, os filhotes padeceriam aos predadores. Não raras vezes vê-se uma fêmea prantear a morte de um filhote.

Esse amor é de tal grandeza considerado e reconhecido, que ao sentir a investida do estado puerperal (e cometer crime contra a vida do recém-nascido) é a pena da mãe abrandada e o crime tipificado como infanticídio, desqualificado pois do homicídio. Somente em estado anormal seria uma mãe capaz de matar seu próprio filho. Foi sábio o legislador diante do puerpério.

Lição de amor e altruísmo foi dada por Janaína César, mãe de Thalles, um ser humano, não feto sem nome, ao relatar sua experiência:

"Desde o primeiro dia, quando foi constatada a má-formação, a ecografista e também minha ginecologista-obstetra informaram-me acerca de uma equipe médica especialista nestes casos que atendia o Hospital Materno-Infantil de Brasília. Na oportunidade, disseram-me que se tratava de uma equipe médica especialista em casos de gestação de risco, seja para a mãe ou para o filho. Alguns amigos da faculdade aos quais relatei a situa-ção me disseram que o Ministério Público concedia autorizações para mu-lheres que desejassem fazer o aborto, principalmente àquelas que recorressem à referida equipe médica do Hospital – HMIB. Por isso, a princípio resisti em marcar uma consulta naquele hospital. Contudo, visando as melhores condições para mim e para o meu filho, busquei um encaminhamento no posto de saúde do Núcleo Bandeirante, tendo em vista que se tratava de especialistas e eu queria, que após o parto, meu filho recebes-se os cuidados necessários, caso viesse a sobreviver depois do corte do cordão umbilical. Realmente, eu já estava decidida a não abortar meu filho. Tal possibilidade somente passava na minha mente à força das pala-vras, muitas delas duras, que ouvia dos médicos, mas tal possibilidade não emanava do meu interior. Queria conviver com o Thalles o tempo que fosse possível, já estava no sétimo mês da gestação e não fosse o fato de que ele era anencéfalo, tudo mais corria na maior naturalidade. Sentia-me bem, não tive alterações fisiológicas além daquelas naturais da gestação, como por exemplo o aumento de nove quilos no meu peso. Enfim, qual a surpresa ao constatar a realidade do atendimento naquela equipe de excelência, pois todo o tempo fui compelida a realizar o aborto. Naquele hospital eram marcadas, uma vez por semana, consultas com a referida equipe. Ficavam numa ante-sala, sem assentos suficientes, por volta de doze mulheres e seus respectivos acompanhantes. Todas elas estavam grávidas de crianças com as mais diversas más-formações, das quais eu nunca tinha ouvido falar. Algumas muito pobres, outras que já haviam tido filhos com aquelas deformidades, conversavam entre si, enquanto eu as observava. Percebi que eu era a única que tinha um filho anencéfalo. Enquanto aguardávamos, pude presenciar um momento que me chocou deveras. É que elas estavam conversando a respeito de uma mãe que tinha passado por ali, algumas semanas antes, que naquele dia estava realizando a interrupção da gravidez. Pude presenciar aquela mãe sentada no corredor do hospital, chorando muito após o parto. Ela estava lá sozinha – porque não permitem acompanhantes no pós-parto de maiores – e sequer, conforme relatou e porque não permitiram, conseguiu ver seu filho direito, o que lhe causou muito sofrimento[...] Chegou a minha vez, e como relatei, os médicos, na pessoa do médico-chefe, me diziam que eu deveria ter feito a chamada interrupção e que uma cesariana traria para mim riscos muito maiores que a interrupção, que eu não deveria mostrar o meu filho para ninguém após o parto e até mesmo que eu poderia ficar cheia de estrias etc. Tudo para que eu interrompesse a gravidez[...] Enfim, graças a Deus, eu e o Thalles superamos todos os preconceitos e dificuldades. Amei-o com toda intensidade que conseguia. Cantei, rezei, brinquei, ou seja, fiz tudo que uma mãe faz com o seu filho no ventre ."

Eis o claro exemplo de que a gestante é mãe desde a concepção. Discorda-se do primeiro conceito dado à palavra mãe pelo Dicionário Novo Aurélio – por coincidência o segundo nome do nome composto do Douto Ministro do STF que decidiu liminarmente sobre a questão. Assim, mãe tem uma expressão bem maior do que aquela. Não o é desde o parto, mas sim desde a concepção.

Pode-se estabelecer diferença entre mãe e gestante: no caso de “barriga de aluguel”, poder-se-ia dizer que a mãe é uma e a gestante é outra. Talvez fosse esse o único caso onde seria plausível afirmar-se que a gestante não é mãe, embora se saiba que aquela que “aluga” a barriga acaba, por vezes, tendo grande apego à criança que virá à luz, a ponto de amá-la como filho.



8.3. O lado não altruísta

Por mais que se diga ser a decisão de abortar personalíssima da mãe, a premissa não é de todo verdadeira. Os casos vislumbrados, principalmente o acima citado, demonstram haver “ajuda” nesta difícil decisão. Há sim indícios de uma espécie de controle e seleção de fetos pelos que pregam o aborto de fetos de bebês anencefálicos. Não pretendendo conduzir a questão ao debate sobre a eugenia, por não ser tema do presente trabalho, torna-se claro que autoridades que pensam nesse tipo de feto como “coisa” sem vida retrocedem na história ao tratá-lo como par viscerum matris (parte das vísceras maternas). Pensam não só no direito da mãe, mas numa forma de seleção pré-natal. Usam argumentos fortes e sensibilizadores.

A manutenção da gravidez manu militari retira um direito e acrescenta um problema. O Estado não pode instrumentalizar o corpo nem a alma de uma mulher. Não pode obrigar uma mulher a manter uma gravidez inútil, sendo discutível se pode obrigá-la a manter qualquer gravidez. Recebo muitas reclamações de famílias que têm parentes mortos em casa, a chamada morte natural em domicílio, e que pedem a remoção do corpo para verificação de óbito. Se a remoção tarda algumas horas, a presença do cadáver na casa gera desconfortos e sofrimentos de toda ordem. Motiva ainda reclamações a todos os telefones de plantão. Nessa mesma linha, os velórios foram transferidos das casas porque as famílias buscam formas de apagar as imagens da morte dos ambientes em que continuarão vivendo. Todos nós temos dificuldades de nos despedirmos dos mortos. Mas muitos de nós somos favoráveis a funerais abreviados.[...] a presença da morte nos incomoda. A morte é desagradável. Como não há esperança de que se repita um milagre de Lázaro, os mortos precisam de descanso eterno. Se condenássemos os homicidas a cumprirem suas penas ao lado dos cadáveres de suas vítimas, logo se invocariam os di-reitos humanos e essa conduta seria considerada uma tortura. Não vejo, pela mesma razão, como não ser tortura condenar uma mulher a manter em seu ventre o corpo de um filho que não vai nascer. O corpo de um filho amado, mas morto. Natimorto. Condenar essa mulher a manter a gestação seria como condenar todos nós a vivermos com nossos mortos nas salas de nossas ca-sas. Seria uma tortura, um desrespeito aos direito humanos. A decisão do STF está sendo e será uma referência não só para o Brasil, mas para os países que ainda não encontraram uma solução digna para casos semelhantes. A solução dada pelo STF consagra o direito reprodutivo como direito fundamental reconhecido pela Constituição Federal, a constituição cidadã .

Outro caso chama a atenção. Em entrevista concedida, de forma explicativa, à revista publicada pela Ong ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, a Doutora Débora Diniz, principal dirigente dessa Ong, relata quando indagada sobre se a liminar do Ministro Marco Aurélio poderia ser revogada:

Sim, uma liminar pode ser revogada, mas esta é uma hipótese muito remota neste caso, considerando que alguns ministros recentemente se posicionaram favoráveis em uma ação individual interposta no STF com pedido idêntico. A liminar foi concedida sem antes ter ido ao plenário do STF, porque não houve tempo hábil para realizar a votação antes do recesso judicial. A expectativa é que todo o Supremo vote por ocasião da sessão plenária que deve ocorrer imediatamente após o recesso que se encerra no início de agosto . (2004)

Para reflexão:

O fato essencial é que os seres sencientes, em especial os seres humanos, querem a felicidade e não querem dor e sofrimento. Por esse raciocínio, temos todo direito à felicidade e a usar meios e métodos diferentes para superar o sofrimento e levar vidas mais felizes. Vale a pena refletir seriamente sobre as conseqüências positivas e negativas desses métodos. Deveríamos ter consciência de que existem diferenças entre, de um lado, interesses a curto prazo, e do outro, interesses e conseqüências a longo prazo. E o interesse a longo prazo é mais importante .



CAPÍTULO IX



9. A argüição de descumprimento de preceito constitucional

9.1. Reflexão sobre a lei n° 9.882/99

Esta lei surgiu como forma de regulamentação do § 1° do art. 102 da Constituição Federal. Introduziu no mundo jurídico pátrio a possibilidade de utilização, perante o Supremo Tribunal Federal, de relevante instrumento de proteção dos direitos e garantias fundamentais.

A norma constitucional prevista no § 1° do art. 102 da Constituição Federal, por ter a natureza de norma constitucional de eficácia limitada, tornou-se dependente da edição de uma lei para complementá-la. Nasceu daí a lei n° 9.882/99, hoje norteadora da apreciação das argüições de descumprimento de preceitos fun-damentais decorrentes da Constituição.



9.2. Conceito de preceito fundamental

É vasta a doutrina sobre a interpretação deste direito; cabe aproveitar os ensinamentos de Alexandre de Moraes para explicá-lo.

Os preceitos fundamentais englobam os direitos fundamentais da Constituição, bem como os fundamentos e os objetivos fundamentais da República, de forma a consagrar maior efetividade às previsões constitucionais. Nesse mesmo sentido, de conceder maior efetividade aos direitos e garan-tias previstas na Carta Magna, importante observar que constitui objeto para a interposição de recurso constitucional perante o Tribunal Constitu-cional Alemão a violação dos direitos fundamentais ou direitos assemelhados a esses por parte do poder público. Dessa forma, a conduta comissiva ou omissiva do Poder Público deve ter desrespeitado atual e frontalmente os direitos fundamentais do legitimado, não se admitindo, portanto, a defesa de direitos fundamentais de terceiros (g.n) ou mesmo a defesa de uma avença virtual futura. Como adverte Häberle, “esse filtro impede que o recurso de amparo se converta em uma ação popular” . Observe-se que devem ser admitidas argüições de descumprimento de preceitos fundamentais contra atos abusivos do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, desde que esgotadas as vias judiciais ordinárias, em face de seu caráter subsidiário .



9.3. Hipóteses de cabimento

Segundo o professor Alexandre de Moraes, a lei possibilita a argüição de descumprimento de preceito fundamental em três hipóteses: a) para evitar lesão a preceitos fundamentais, resultantes de ato do poder público: b) para reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do poder público; c) quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição .



9.4. São duas as espécies de argüição de descumprimento de preceito fundamental: a argüição preventiva, visando a evitar lesão; e a argüição repressiva, para reparar uma lesão.

Será considerada prévia aquela argüição de descumprimento de preceito fundamental perante o Supremo Tribunal Federal que pretenda evitar lesões futuras a princípios, direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal. Assim como as que pretendam reparar lesões, quando causadas pela conduta comissiva ou omissiva de qualquer dos poderes públicos.

Com certeza, a regulamentação do §1°, do art. 102, da Constituição Federal, possibilita maior efetividade no controle de ilegalidades e abusos do poder público e na concretização dos direitos fundamentais. Ressalta André Ramos Tavares:

Com essa regulamentação, certamente o Supremo passará a ocupar, em sua plenitude, a verdadeira posição de guardião da Constituição, que lhe foi cometida pela própria Carta Política (g.n.). E isso se daria exatamente pela instituição desse especial tratamento aos preceitos constitucionais basilares (g.n.), que justamente por sua fundamentalidade estão a merecer essa especial abordagem . Com o instrumento da Lei n° 9.882/99, o Supremo Tribunal Federal pode, de forma rápida, geral e obrigatória – em face da possibilidade de liminar e da existência de efeitos erga omnes e vinculantes – evitar ou fazer cessar condutas do poder público que estejam colocando em risco os preceitos fundamentais da República, em especial a dignidade da pessoa humana e os direitos e as garantias fundamentais.



CAPÍTULO X



10. A ARGUIÇÃO DE DESCUMPIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL n° 54

O Supremo Tribunal Federal entendeu admissível este instrumento para o exame e julgamento da possibilidade do parto terapêutico de fetos anencefálicos em decisão de 27 de abril de 2005.

O caso em exame é o da liberação do aborto de feto anencefálico.

A Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde ajuizou, em 16 de junho de 2004, a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental perante o Supremo Tribunal Federal, onde no pedido inseriu interpretação conforme a Consti-tuição, acrescentando ao feito: a) pedido cautelar; b) pedido principal; c) pedido alternativo, com base em questões processuais relevantes que listou, preliminar-mente: a) legitimação ativa e pertinência temática; b) cabimento da ADPF; e no mérito preceitos fundamentais violados que enumerou: a) dignidade da pessoa humana (analogia à tortura); b) legalidade e autonomia da vontade; c) direito à sa-úde.

A hipótese: anencefalia; inviabilidade do feto e antecipação terapêutica do parto. Alegação: a antecipação terapêutica do parto não é aborto.

O fundamento dessa ação esta na alegação de que o ordenamento normati-vo pátrio vulnera a dignidade da pessoa humana, indicando como preceitos vulnerados o art. 1°, IV da Constituição Federal (a dignidade da pessoa humana), o art. 5°, II (princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade) e os arts. 6°, ca-put e 196 (direito à saúde). Segundo peticiona a Confederação, o poder público seria o causador da lesão por meio do conjunto normativo representado pelos arts. 124, 126, caput e 128, I e II, do Código Penal Brasileiro (Decreto-lei n° 2.848, de 1940).

A ADPF tomou no STF o n° 54 e desenvolveu sua pretensão, asseverando que a patologia da anencefalia “torna absolutamente inviável a vida extra-uterina”. Com esta hipótese pretende-se provar que não há que se falar em aborto eugênico, cujo fundamento é eventual deficiência grave de que seja o feto portador. Na última hipótese há a pressuposição da inviabilidade do nascituro, por não ter este a condição de uma vida extra-uterina. Afirma ser o caso em relação à anencefalia.

O que pretende a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde é a interpretação conforme a constituição da disciplina legal dada ao aborto pela legis-lação penal infraconstitucional, para explicar que ela não se aplica aos casos de antecipação terapêutica do parto na hipótese de fetos portadores de anencefalia, devidamente certificada por médico habilitado .

A ADPF n° 54, item 26, assevera que por não haver viabilidade de outra vi-da, ali não há sequer um nascituro. Então, o preceito fundamental a ser defendido é o da dignidade da pessoa humana ferida, a gestante, no caso. Equivocadamente, chama a seu socorro a conceituação dada a nascituro pelo filólogo Aurélio Buarque de Holanda: “Nascituro (...) 3. Jur. O ser humano já concebido (g.n.) cujo nasci-mento se espera como fato futuro certo”. Equivoca-se porque faz interpretação ad-versa do significado real que a autoridade quis exprimir quanto a nascimento.

No mesmo dicionário se ratifica que o verbo nascer significa "vir ao mundo; vir à luz; começar a vida exterior. Quanto ao vocábulo nascimento, ensina: “Ato de nascer; nascença 2. Princípio, começo, nascença. 3. Origem, procedência ...Ter nascimento. Ser de origem ou estirpe famosa, célebre, rica, etc: ter berço”.

No caso em exame, por hipótese, pode-se tratar de um ser humano (nascituro), de uma família tal (origem), que veio à luz e começou a vida exterior num dado mo-mento e veio a falecer em outro momento.

Em situações concretas: o ser humano Thalles da Silva César, filho de Jana-ína da Silva César (portanto, da família Silva César), veio à luz, nasceu com vida, às 13h15min de 9 de agosto de 2002, foi registrado como cidadão brasileiro, vindo a falecer às 11h25min de 10 de agosto de 2002. Sobre esse período, relata a mãe: “ele permaneceu com a minha família e toda a multidão que ia vê-lo na incubadora; foi um grande lucro” .

Voltando ao artigo de autoria do ministro Marco Aurélio, chama a atenção: “assenti aos argumentos de que a permanência do feto mostra-se perigosa”. O magistrado baseou-se nos autos da argüição, bem preparados pelo ilustre advoga-do e constitucionalista Dr. Luís Barroso. Houve porém pequeno lapso na interpre-tação do que é vida e o que é ser humano. No quadro acima, por dedução lógica o caso leva à constatação de que há personalidade no ser humano que acaba de nascer. Vive, recebe nome que o identifica (personifica) e vem a falecer. Analisado todo o contexto no decurso do trabalho conclui-se que imbuído talvez pelo eviden-ciado na mídia imediata, tenha de boa-fé o douto jurista levantado a tese de que, nessas condições, o nascituro não é humano, sequer um ser. Transportando-se ao passado longínquo, de forma retrógrada, passou a ver o nascituro como parte das entranhas maternas.

Partindo de premissa falsa, chegou a conclusões errôneas e levou-as ao Exame da Corte Maior, conseguindo liminar no primeiro dia do recesso do Judiciá-rio. Não bastasse o primeiro equívoco, outros tiveram origem em decorrência des-te: na contestação formulada pelo procurador-geral da República, feita à ADPF n° 54, Sua Excelência expõe com clareza o papel que o Constituinte reservou ao Su-premo Tribunal Federal no mundo jurídico pátrio, ao refletir sobre os limites do uso da argüição de descumprimento de preceito fundamental como instrumento na ava-liação dos preceitos normativos. Buscou em Rui Medeiros a resposta:

Por outro lado, e agora quanto às relações entre os órgãos de fiscalização da constitucionalidade em geral e o legislador, ninguém ignora que a in-terpretação conforme a Constituição se pode converter num meio de os órgãos de controle se substituírem ao legislador. “Perante os perigos da usurpação do conteúdo normativo-constitucional por um conteúdo legisla-tivo apócrifo”, salta à vista a importância da determinação dos limites da interpretação, conforme a Constituição. Este é, justamente, um dos domí-nios em que se joga a problemática do “activismo” ou da “criatividade” dos juízes constitucionais. Há que impedir a transformação, ainda que com e-feitos limitados ao caso concreto da pretensa adequação em verdadeira e própria modificação da disposição fiscalizada”. A relevância da questão não pode ser subestimada com base na idéia de quem tem competência para proferir uma decisão de inconstitucionalidade de um preceito legal pode, por maioria de razão, optar por uma decisão interpretativa. Com e-feito, quando o conteúdo atribuído à lei pelo órgão fiscalizador através do apelo à interpretação, conforme a Constituição contém já não um minus, mas antes um aliud em face do conteúdo originário da lei”, o órgão fiscali-zador “intervém mais fortemente nas competências do legislador do que nas hipóteses em que profere uma decisão de invalidade”: enquanto após a decisão de invalidade da lei, a nova conformação material positiva é rea-lizada diretamente pelo legislador, no caso de decisão interpretativa tal ta-refa é lavada a cabo pelo próprio órgão fiscalizador. Este, mais do que in-terpretar a lei, corrige-a ou converte-a e, obviamente, a correção e a con-versão da lei atingem mais intensamente as competências do legislador do que a mera invalidação ou não da aplicação da lei. “A admissibilidade de uma correção intrínseca da aplicação da lei” é, portanto, muito mais a-tentatória “da preferência legislativa constitucionalmente concretizada do que a declaração ou o reconhecimento de inconstitucionalidade” .

No primeiro momento, o doutrinador Rui Medeiros alerta para o perigo que há quando da interpretação da norma, consoante a Constituição. Expõe claramente que no limiar dos campos o magistrado da Alta Corte pode acabar por transcender o seu papel de fiscalizador e passar a legislar positivamente, o que não é de sua competência. Há sério risco de desequilíbrio na segurança jurídica das decisões tomadas por aquela Corte. Esse abalo é importante. Ao decidir pelo Pleno, inserirá o fiscalizador nova legislação ao ordenamento, sob o argumento da fiscalização, podendo causar sérios prejuízos à sociedade e ao Estado Democrático de Direito estabelecido, visto serem vinculantes seus efeitos, agora mais que nunca, com a promulgação da Emenda Constitucional n° 45/2005.

Continua o procurador-geral da República, em sua citação a Rui Medeiros:

Embora não expresse adesão aos que consideram os sentidos literais possíveis como o limite da interpretação, conforme a Constituição, “os sentidos literais possí-veis não constituem, de per si, limites à interpretação latu sensu corretiva da lei, porque nesta sede à letra se pode preferir sentido que a letra traiu” . Adverte Rui Medeiros:

Sobretudo, e este é o aspecto que importa aqui realçar, a relevância do cânone da interpretação conforme a Constituição não exclui, antes tem como pressuposto de sua correta consideração uma bem consciente de-marcação dos níveis jurídico-constitucional e jurídico-legislativo ordinário, não pretendendo anular numa confusão de planos a relativa autonomia hermenêutico-jurídica de ambos. Por outro lado, como referiu Volker Haak em 1963, o sentido inequívoco que a lei enquanto tal apresenta, abstrain-do da conexão sistemática com a Constituição, não pode ser posto em causa pela interpretação conforme a Constituição, visto que o elemento sistemático-teleológico transcendente à lei permite sempre, de per si, o re-sultado conforme a Constituição e, por isso, para excluir o resultado con-forme o sistema é necessário buscar um limite fora do sistema. Se não fosse assim, nunca haveria leis inconstitucionais: a conversão da ratio le-gis ou do elemento teleológico (...) aos compromissos e ao espírito do sis-tema político-normativo constitucional, aliada à possibilidade de ultrapas-sar os sentidos literais possíveis, afastaria em sede interpretativa o pro-blema das leis inconstitucionais. Uma tal conclusão seria manifestamente incompatível com a previsão do legislador constitucional do fenômeno da inconstitucionalidade da lei. Os limites à interpretação em conformidade com a Constituição têm, portanto, de decorrer da interpretação da lei enquanto tal .

Mesmo adentrando as concepções subjetivas (ou objetivas), o procurador-geral da República cita novamente recorrendo a Rui Medeiros:

Mas, tanto na linha subjectivista, como numa perspectiva eclética, ou até, como demonstra a posição de Oliveira Ascensão ou Volker Haak, objecti-vista moderada, aquilo que o legislador quis claramente, e como querido o declarou, deve ser tomado como conteúdo da sua regulamentação. Por isso, pelo menos em princípio – ou, caso se perfilhe a posição de Robert Alexy. O apelo à Constituição em sede de interpretação em sentido estrito não pode neste sentido contrariar a letra e a intenção claramente reco-nhecida do legislador ou, numa versão mais restritiva que já subjacente à tendência geral da lei ou às opções fundamentais nela consagradas (...) deve ficar claro que está vedada aos juízes a ‘feitura’ e uma nova lei com conteúdo diferente da anterior: a interpretação segundo a Constituição não pode, em caso algum, converter-se em instrumento de revisão do direito anterior à Constituição. Sói que, na perspectiva do objectivismo actualista agora referida, enquanto a vontade do legislador documentada através da história do preceito pode eventualmente limitar a interpretação conforme a Constituição de leis pós-constitucionais (não podendo ser falsificada atra-vés da interpretação em conformidade com a Constituição), basta, em relação a leis anteriores à Constituição, que o novo entendimento seja admi-tido pela letra do preceito e não contrarie o sentido objectivo da lei. A correlação da lei significa apenas correcção da letra da lei, não podendo ser realizada quando os sentidos literais correspondem à intenção do legisla-dor ou quando o resultado que se pretende alcançar não se harmoniza com a teleologia à lei. Para além disso, por mais desejável que se apre-sente uma alteração do sistema normativo, pertence às fontes de direito, não ao intérprete (...) Razões extremamente ponderosas de segurança e de defesa contra arbítrio alicerçam esta conclusão. Isto já para não falar do princípio da separação dos poderes. A interpretação correctiva da lei, em conformidade com a Constituição não se traduz, portanto, numa revi-são da lei em conformidade com a Lei Fundamental .



10.1. A lei n° 9.882/99 e o direito pré-constitucional

Logo informa, em seu art. 1°, caput, haver cabimento para a argüição de des-cumprimento de preceito fundamental, para evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público. Em seu parágrafo único explicita cla-ramente que caberá também a argüição de descumprimento, quando for relevante fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, inclusive anteriores à Constituição. Ensina Gilmar Mendes:

De certa forma, a argüição de descumprimento vem completar o sistema de controle de constitucionalidade de perfil relativamente concentrado no Supremo Tribunal Federal, uma vez que as questões que até então não podiam ser apreciadas no âmbito do controle abstrato de constitucionalidade (ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade) serão objeto de exame do novo procedimento (...) As constituições brasileiras de 1891 (art. 83), de 1934 (art. 187) e de 1937 (art. 183) estabelecem cláusulas de recepção, que, tal como as cláusulas de recepção da constituição de Weimar e da Constituição de Bonn (respectivamen-te, art. 178, II, e art. 123, I), continham duas disposições: a) assegurava-se, de um lado, a vigência plena do direito pré-constitucional; b) estabelecia-se, de outro, que o direito pré-constitucional incompatível com a nova ordem perdia a vigência desde a entrada em vigor da nova Constituição

O Supremo Tribunal admitiu, inicialmente, a possibilidade de examinar, no processo do controle abstrato de normas, a questão da derrogação do direito pré-constitucional, em virtude de colisão entre Constituição Superveniente e o direito pré-constitucional. Nesse caso, julgava-se improcedente a representação, mas reconhecia-se expressamente a existência da colisão e a incompatibilidade entre o direito ordinário pré-constitucional e a nova Constituição. O Tribunal tratava esse tema como uma questão preliminar, que haveria de ser decidida no processo de controle abstrato de normas. Essa posição foi abandonada, todavia, em favor do entendimento de que o processo do controle abstrato de normas destina-se, fundamen-talmente, à aferição da constitucionalidade de normas pós-constitucionais Dessa forma, eventual colisão entre direito pré-constitucional e a nova Constituição deveria ser simplesmente resolvida segundo os princípios de direito intertemporal. Assim, caberia à jurisdição ordinária, tanto quanto ao Supremo Tribunal Federal, examinar a vigência do direito pré-constitucional no âmbito do controle incidente de normas, uma vez que, nesse caso, cuidar-se-ia de simples aplicação do princípio do lex posterior derogat priori, e não de um exame de constitucionalidade.

CAPÍTULO XI



11. Reflexões sobre a ADPF nº 54 - I

Sou pai de quatro filhos. Todos desejados, acalentados, bem-vindos. Felizmente, no âmbito da minha família, nunca deparei com a escolha entre prosseguir ou interromper um processo gestacional, seja qual for o motivo. Se acontecesse de defrontar com tão angustiante situação, deixaria à minha mulher a decisão. É que, em última análise, a mim recairiam ainda os sofrimentos físicos e psicológicos de tão radical deliberação, pois é certo que, nesses casos, as repercussões corpóreas e espirituais são mais diretas, profundas e duradouras na mulher. O homem, por mais presente e integrado, acaba assistindo a tudo a certa distância. Todas essas considerações vêm a propósito do intenso debate que mobiliza o país desde que deferi um pedido liminar formulado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), possibilitando assim a antecipação terapêutica do parto ou, em outras palavras, a interrupção da gravidez de feto anencéfalo, sem o receio da glosa penal. Assenti sobretudo aos argumentos de que a permanência do feto mostra-se potencialmente perigosa, podendo ocasionar danos à saúde e à vida da gestante. Anuí à lógica irrefutável da conclusão sobre a dor, a angústia e a frustração experimentadas pela mulher grávida ao ver-se compelida a carregar no ventre, durante meses, um feto que, sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá (g.n.). Não pude deixar de concordar em que, para qualquer pessoa nessa situação, ficar à mercê da permissão do Estado (g.n.) para livrar-se de semelhante sofrimento resulta, para dizer o mínimo, em clara violência às vertentes da dignidade humana (g.n.) – física, moral e psicológica. Definitivamente, não tive como aquiescer à ignomínia, à luz da letra fria – e qui-çá morta – da lei, (g.n.) condenar a gestante a suportar meses a fio de de-sespero e impotência, em frontal desrespeito à liberdade e à autonomia da vontade, direitos básicos, imprescindíveis, consagrados em toda a socie-dade. É até possível para alguns passar incólume pela decisão de, mediante simples omissão, escudados pelas lacunas ou obsolescências da le-gislação, (g.n.) impingir dor e aflição a outrem. Ora, principalmente em ca-so penoso como o que se põe em discussão, há que se calçar o sapato, mas com o pé do outro, de modo a sentir exatamente onde lhe machuca o calo. Seria então de bom alvitre que o julgador, para aguçar o termômetro da sensibilidade, perguntasse a si mesmo, antes de qualquer decisão: e se fosse com a minha filha, minha mulher, minha irmã? Suportaria eu esses nove meses de tormento, de esperança sem esperança? (g.n.) Ao fim e ao cabo, a pergunta que não quer calar é: quem poderá, efetivamente, dimensionar a dor alheia? Quem poderá condenar outrem a querer, antes de tudo, preservar a si mesmo, colocando à margem outros valores? (g.n.) por que se deve respeitar os valores de quem tem fé e olvidar as convic-ções de quem ignora dogmas religiosos ou trajetórias espirituais? (g.n.) em nome de que deus ou sob a égide de que premissas humanitárias de-fende-se o direito à efêmera sobrevivência de um em detrimento do risco e do padecimento, sabe-se lá a gravidade das conseqüências, de outro ?

Cabe separar o artigo do ministro Marco Aurélio em partes, para reflexões sobre a pretensão do ADPF nº 54 :

a) viu-se a posição de renomados doutrinadores a respeito da argüição de descumprimento de preceito fundamental. As posições dos eminentes doutores Rui Medeiros - citado por Cláudio Fonteles - e Gilmar Mendes bastam para demonstrar que a decisão a se tomar não se prende a dogmas religiosos ou a deuses, muito menos a trajetórias espirituais. Há um rito no direito a ser cumprido, até pelos que têm a competência constitucional de fiscalizar o ordenamento e fazer o controle da constitucionalidade dos atos normativos. Não há colisão normativa. Não há direitos fundamentais feridos. Há que se seguir a lei cogente, que obriga a todos. Não se pode, por inconstitucional, ampliar o âmbito da lei ordinária, que é clara sobre as excludentes de punibilidade em caso de aborto;

b) há que se concluir também que a dor e o sofrimento fazem parte da vida de cada um; o simples ato de vir à luz já é violento e sofrido ao nascimento; “o ginecologista disse que de qualquer forma salvaria a mãe; de fato, nasci semimorto, saí sentado, estrangulado pelo cordão umbilical, e foi preciso meia hora de palmadas no bebê suspenso pelos pés para que soltasse seu primeiro choro (...) e havíamos sobrevivido ambos por milagre; eis pois, o acontecimento inicial de minha vida: Nasci da morte e fui arran-cado da morte” .(MORIN)

c) tem razão o ministro Marco Aurélio quando afirma serem obsoletas algumas leis atuais e que há lacunas no ordenamento. É quando chama o Poder Legislativo à responsabilidade, pois é sua a competência de legislar sobre a matéria, cabendo ao Supremo fazer o controle constitucional, portanto legislar em sentido negativo, nunca positivo;

d) a permissão dada pelo Estado tem que ser processada pelo legislador; é competência do Poder Legislativo ouvir os anseios da sociedade e, representando-a como um todo, elaborar as leis que estabilizarão a convivência social, colocando freios no próprio Estado;

c) um termo e uma palavra retirados do desabafo do ministro em seu artigo são emblemáticos para o tema ora discutido: 1) “clara violência às vertentes da dignidade humana” e ; 2) “não sobreviverá”; no que pertine à violência às vertentes da dignidade humana, será tema para as conclusões a que este estudo pretende chegar, porém, não se pode deixar de comentar, à luz do dicionarista Aurélio, o conceito de sobrevivência (sobrevivência – qualidade ou estado de sobrevivente; sobreviver – 1. continuar a viver, a ser, a existir, depois de outras pessoas ou de outras coisas. Morreram todos na catástrofe, só ele sobreviveu; 2. continuar a viver, a ser, a existir. “Se eu morrer antes [do cão], como presumo, sobreviverei no nome do meu bom cachorro.” (Machado de Assis, Quincas Borba, p. 7) .



11.1. Reflexões sobre a ADPF nº 54 - II

Continua o ministro Marco Aurélio:

Penso que no cerne da questão está a dimensão humana (g.n.) que obstaculiza a possibilidade de se coisificar uma pessoa, usando-a como objeto. São muitos e de crucial importância os valores em perigo (g.n.). A um só tempo cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu senti-do maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana (g.n.). Ao saber-se portadora de uma nova vida, a mulher percebe inundar-lhe o sentimento de maternidade. São nove meses de substanciais mudanças no seu dia-a-dia, vivenciadas minuto a minuto. O dissabor das modificações físicas, estéticas, logo é suplantado pela alegria de descobrir-se reeditando o impressionante milagre da vida. As percepções se aguçam, elevando a sensibilidade ao nível máximo e todos os esforços são direcionados ao alvissareiro acontecimento que é o nascimento de uma criança (g.n.). A natureza, entrementes, reserva surpresas às vezes desagradáveis. Diante da notícia da existência de uma deformação irreversível no feto, constatada graças aos avanços tecnológicos no campo da medicina, postos à dispo-sição da humanidade justamente para amenizar padecimentos, e ao agigantá-los, vê-se a gestante numa encruzilhada: ou se rende à fatalidade e queda, inerte, ante o lapso do legislador (g.n.), aguardando submissa o término desse desditoso período, como se merecesse ser castigada, ou ousa se rebelar, preferindo lutar pelo bem-estar pessoal, quem sabe até resguardando a própria sanidade física e mental (g.n.). O certo é que, em se tratando de anencefalia, a ciência médica atua com 100% de certeza. Consoante atestam confiáveis dados estatísticos, 50% dos fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino (g.n.). Se porventura a gestação chega a termo, a sobrevida (g.n.) é diminuta, não ultrapassando período que possa ter sido razoável, não havendo nenhuma chance de serem a-fastados os efeitos da deficiência. Portanto, diante de tais circunstâncias, não há como refutar a assertiva de que se prolongar a gestação é infligir à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina (g.n.) como negar que, nessa hipótese, acaba-se por obrigar a gestante a conviver com a triste realidade e a lembrança ininterrupta de que o feto, dentro de si, nunca poderá se tornar um ser vivo? (g.n.) Se assim é, configura-se situação concreta que foge às restrições relativistas ao abortamento – que sempre pressupõe a potencialidade da vida. (g.n.) Em suma, a saúde, como definida pela Organização Mundial da Saúde, fica solapada sob os aspectos físico, mental e social.(g.n.), daí haver entendido ser mister afastar-se esse distorcido quadro, impedindo-se que se projete no tempo tão esdrúxulo drama – essas as razões que me levaram à concessão da comentada liminar.(g.n.). Logicamente, diante da complexidade das questões envolvi-das, da importância dos valores em jogo, é bastante compreensível – e até desejável – que toda a sociedade se manifeste num salutar e profícuo debate de idéias e opiniões. Estamos numa era em que mais do que nunca é preciso exercitar a tolerância e cultivar o respeito pelas manifestações externas pelos diversos segmentos sociais. Há que se ouvir não só pessoas com experiência e autoridade na matéria, mas todos os que, de uma forma ou de outra, sintam-se alcançados pelo desfecho da controvérsia e queiram ou entendam possam dar alguma contribuição. Por isso, como relator do processo, resolvi incentivar o debate com o intuito de enriquecê-lo, abrindo oportunidade a que interessados – na simples condição de parte do tecido social – pronunciem-se. Bem sei que a discussão jamais se esgotará, tantos e tão significativos mostram-se os aspectos en-volvidos. De minha parte serei todo ouvidos, estando pronto à evolução se convencido da erronia do pronunciamento implementado no campo acautelador. Que ao final, com respaldo na necessária lógica da razão, com esteio no arcabouço normativo-constitucional, mas sobretudo consideradas vertentes éticas e humanitárias que se encontram no âmago da questão, chegue a corte à decisão mais sábia, mais prudente,mais justa, como sempre sói acontecer. Oxalá assim seja mais uma vez .



11.2. Reflexões sobre a ADPF nº 54 - III

a) Em suas reflexões, o ministro Marco Aurélio se mostra preocupado com os obstáculos à possibilidade de se “coisificar” uma pessoa. Decerto, a sociedade moderna, após anos de evolução e competição, o que é da natureza humana, tornou-se uma sociedade hedonista.
O presente trabalho trouxe à discussão a questão do egoísmo e a do altruísmo. Parte-se do princípio, conforme ensina Pietro U-baldi, de que estágios vão sendo alcançados na evolução humana. Por essa tese estaria a sociedade moderna em fase retrógrada, alcançado o ápice do altruísmo social, a retornar a esfera do egoísmo? Ou de outra forma. Temos que assumir que estamos numa sociedade que pratica o hedonismo como forma de vida? Esta reflexão do ministro merece destaque. Que valores são esses que estão em perigo? Somente a saúde, o direito à liberdade e o direito da autonomia da vontade? A premissa para que tudo isso aconteça é a gênese, a vida? Como está a sociedade a cuidar deste que é o maior valor a ser preservado? As reflexões de Dastur levam-nos a perceber de que forma encaramos o luto. Será que Dastur acerta em suas afirmativas. O medo, o pavor diante da morte não faria com que a sociedade passasse a coisificar o ser humano? Volta a pergunta que não quer calar: seria o ser humano capaz de reproduzir-se em forma de uma batata? E se esta premissa não for verdadeira, o que reproduz um ser humano a não ser outro? E se é outro o ser humano, onde tem origem o preceito fundamental da dignidade da pessoa huma-na? Há que se refletir! ;

b) Quando o ministro Marco Aurélio assinala que “a mulher percebe inundar-lhe o sentimento de maternidade”, mostra razão. Durante os nove meses de gestação Janaína percebeu inundar dentro de si o sentimento de maternidade. Ali nasceu a maternidade. Janaína alegrou-se ao ver e ter contato com o filho a quem ama até hoje : “Sou mãe do Thalles, vivo ou morto, bonito ou feio, presente ou ausente. Sou mãe dele porque ele efetivamente existiu e foi gerado em mim”;

c) no que concerne à “deformação irreversível do feto”, afirmou o Ministro que “assentiu aos argumentos de que a permanência do feto mostrava-se perigosa.”;

d) Preciosa e pertinente a constatação do ministro, quando fala do “lapso e da inércia do legislador. Cabe analisar, o que será feito na conclusão deste trabalho, se houve mesmo inércia, ou lapso, ou se o legislador houve por bem manter a legislação como está.

e) Decerto ao insistir na premissa de que 50% dos fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino, o ministro guiou-se pelos autos da ADPF, visto que não há comprovação desse índice, visto que a própria Inicial da ADPF n° 54 afirma ser este índice de aproximadamente 65%, maior portanto. O que significaria o des-carte natural dos fetos deste tipo



CONCLUSÕES



Após a exaustiva viagem que o tema proporcionou, há que se levar em conta todos os argumentos esculpidos pelas reflexões levantadas.

Se em determinados momentos da História a vida teve um valor inferior, a partir da evolução científica e sociológica nota-se que esta mesma vida tomou outros valores determinantes. Não se pode mais falar em vida sem que se leve em conta o caráter humanístico. Isto mostra reflexo nos mais diversos diplomas legais que advieram da Revolução Francesa, a qual podemos chamar de Revolução da Vida.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos veio a corroborar o valor dado pelo Homem à vida humana.

No Brasil este tema foi elevado ao mais alto patamar ao ter o ser humano o direito à vida assegurado como o bem maior: preceito fundamental.

A Constituição Federal (art. 5º, caput) deixa claro que é obrigação do Estado garantir esse direito maior e o Código Civil brasileiro (art. 2º), determina quando ele começa : “desde a concepção”. Não obstante, o tratado sobre direitos fundamentais do qual o Brasil é signatário, o Pacto de San José, em seu art. 4º, também determina o exato momento legal de quando a vida deve ser posta a salvo: desde sua concepção.

Os defensores da tese abortista, procuram de uma outra forma, com o legítimo socorro do Supremo Tribunal Federal trilhar o caminho do direito fundamental da mulher na escolha de dar ou não à luz bebês com tal anomalia. Avançam também na tese da liberação total do aborto.

No entanto, a Constituição Federal e o arcabouço das leis infraconstitucionais devem ser protegidos de qualquer ataque pelo próprio STF que, constitucionalmente tem o dever de legislar negativamente.

Se a legislação em vigor protege a vida como o preceito fundamental maior, cabe ao STF fazer valer tal premissa : a vida é o bem maior.

Não obstante o sofrimento da gestante, um tipo de sofrimento semelhante aos que sofrem de outros males, o prefeito fundamental da vida intra-uterina está sobreposto ao seu. É este o direito a ser preservado.

Pessoas que vivem uma vida longa e inteira com anomalias como os tetraplégicos e semelhantes, têm um sofrimento constante e duradouro, sem alternativas de cura e devem ser respeitados e protegidos pela Lei. O sofrimento alegado da gestante de feto anencefálico, diante do primeiro, é extremamente rápido e pas-sageiro.

Portanto, a proteção da vida intra-uterina deve ser olhada de forma altruísta não só pelo Estado, o maior protetor daquele ser indefeso, mas também pela gestante ao conceder-lhe, no mínimo a dignidade de uma vida curta, mas protegida desde o ventre materno.

Por outro lado, o constituinte original brasileiro quando definiu a vida como o maior bem a ser protegido não deu a ela nenhum adjetivo para tanto. Ao contrário abrangeu-a no mais amplo conceito, tornando cláusula constitucional pétrea a sua proteção.

Não se há que olhar o Poder Legislativo como omisso ou denominá-lo negligente quanto a legislar sobre a matéria. Qualquer decisão no sentido de se criar lei com caráter de consentir aborto de feto com anencefalia, mesmo oculta sob nova nomenclatura, estará ferida de morte por atacar frontalmente cláusula pétrea, portanto eivada pela inconstitucionalidade.

Há que se formular políticas públicas no sentido de dar a toda a população condições de acesso ao complemento fólico como forma de medida preventiva da anomalia, cumprindo-se assim o dever do Estado.