quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Humanismo Dialético: a filosofia jurídica de Roberto Lyra Filho

Alexandre Araújo Costa


Este livro descreve a filosofia do direito delineada por Roberto Lyra Filho e analisa criticamente os seus principais conceitos.



Introdução

1.1 Dialética e superação

‘É possível ler Roberto Lyra Filho de várias formas: todo autor genial e criativo é multifacetado e se presta a manobras que tomam isto e largam aquilo, segundo as preferências, predeterminações e preconceitos. Há, sempre, cá e lá, uns textos ou frases isoladas, que arrimam esta ou aquela leitura. Mas o que me interessa é outra coisa: é o sentido geral, é a curva lyriana. Toda disposição em linha reta é tanto mais arbitrária, quanto mais forceje para dar “coerência” ao seu autor, expungindo contradições fecundantes e rompendo a continuidade do itinerário.



Uma lição de pensamento não é uma colagem de instantâneos, mas um filme, cujo enredo reintroduz personagens e ambientes, sob focos diversos e em diferentes etapas da evolução, que só se detém com a morte do pensador, para aquela sobrevida conosco, permitindo repensar o todo, remontar a película, criar seqüências, substituir angulações.



Não cabe recuperar o Lyra autêntico — não estamos diante de Bonifácio VIII, proclamando a bula Unan Sanctam, uma só fé, um só senhor, um só batismo. Também não se trata de recuperar Lyra, preenchendo o que falta em seu pensamento — se o fizéssemos perderíamos o essencial, isto é, Lyra pensando, abrindo para nós um campo para pensarmos a partir dele e mesmo contra ele. O roteiro vivo, móvel da reflexão lyriana permanece como “possibilidade aberta” duma retomada do itinerário, onde ele projetou luzes perenes, mas não exaurientes; um bastão, para a corrida de revezamento, e não um poço de sabedoria estagnada.’



As palavras acima foram tomadas do livro Karl, meu amigo, no qual Lyra descreve o modo como ele julgava que deveria ser lida a obra de Marx[1]. Nelas, apenas substituí Marx por Lyra, pois eu gostaria de entender o seu pensamento com o mesmo espírito que ele tentava compreender o de Marx: não buscando nele catecismos nem dogmas, mas inspiração para elaborar um pensamento verdadeiramente dialético sobre o direito, numa perspectiva consciente de sua própria historicidade e que espera de seus seguidores que não o repitam, e sim que o superem. Essa idéia de superação é constante em Lyra e está na base do que ele chama de dialética: um movimento histórico que parte da afirmação de uma tese, passa pela sua negação e culmina na negação da negação. E ele insiste na importância da negação da negação, que não pode ser entendida como uma mera desconstrução, mas precisa implicar uma superação criativa da tese contraposta.



Então, por mais que Lyra dirija contra as ideologias jurídicas hegemônicas um projeto de crítica demolidor, ele considera que se essa crítica tivesse como objetivo apenas rejeitar os elementos consolidados nas tradições hegemônicas, ela desembocaria em um ceticismo paralítico[2]incapaz de orientar um projeto de emancipação social. Assim, para além da negação niilista das concepções que esgotaram o seu potencial libertário, Lyra busca realizar a negação da negação, de forma a incorpora, transmudar e reenquadrar elementos do quadro anterior na edificação subseqüente[3]. Dessa maneira, é evidente a ligação das idéias de Lyra com o movimento, com o processo de transformação social, pois ele deixa muito claro que seu objetivo é modificar a própria realidade. Não se trata de oferecer simplesmente uma interpretação alternativa do direito, mas uma verdadeira alternativa ao direito vigente.



1.2 Dialética e direito

Lyra Filho observou com precisão que muitos marxistas ortodoxos encararam a obra marxiana como um dogma e, com isso, perderam justamente o que ela tinha de dialética. Contra essas leituras dogmáticas e reducionistas, Lyra procurou realizar uma interpretação menos idealista: em vez de tentar construir artificialmente um sistema com os fragmentos de pensamento jurídico contidos nos textos de Marx, ele partiu da constatação de que a obra marxiana não trazia uma teoria ou uma doutrina jurídica, mas idéias nas quais, precisamente, à falta de articulação sistemática, fervilham as ambigüidades, antinomias e extrapolações temerárias. Isto, não só nesta ou naquela etapa, neste ou naquele escrito marxiano, porém coexistindo em tumulto, dentro da mesma etapa e até no mesmo escrito — ou parágrafo —, de forma a tornar inviável qualquer esforço exegético de harmonização superficial[4].



Contra essas sistematizações artificiais e lineares, Lyra propôs uma leitura radicalmente dialética, que indicava as contradições e limitações do pensamento marxiano para, justamente a partir delas, identificar um terreno conceitual em que um requintado conceito de Direito lograria inserir-se[5]. Portanto, o objetivo da Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR) não era identificar a teoria do direito presente nos escritos de Marx, mas elaborar uma teoria dialética do direito, realizando a síntese que virtualmente sugere o acervo marxiano, onde chega a entremostrar-se de forma intermitente[6].



Essa proposta deixa claro que, diversamente de Marx, Lyra Filho tinha por objetivo explícito a construção uma teoria sistemática acerca do direito, que ele considerava uma espécie de negação da negação da teoria marxiana, levando-a para além dos territórios que ela desbravou. Portanto, existe uma diferença fundamental na leitura das obras de Marx e de Lyra. Marx não buscava uma teoria sistemática do direito e, portanto, ler nas obras marxianas um tal sistema é um exercício artificial. Lyra, porém, pretendeu oferecer um sistema de inspiração marxiana, de tal forma que não seria justo buscar na obra lyriana apenas instrumentos conceituais inspiradores para a elaboração de uma teoria crítica que nela não se encontra, sendo necessário avaliar em que medida a construção teórica pretendida por Lyra foi efetivamente realizada.



É claro que ninguém consegue cumprir completamente os planos que faz e que toda construção humana é provisória e inacabada. Portanto, identificar as incompletudes e contradições da concepção jurídica de Lyra significa menos apontar-lhe um defeito que acentuar as suas peculiaridades. Ambigüidades, contradições, incompletudes e pressupostos indemonstráveis são elementos integrantes de toda teoria, e não equívocos que a desqualificam. Portanto, seria expressão de uma ingenuidade epistemológica insustentável acreditar que devemos relegar ao limbo uma concepção teórica tão logo descubramos as suas incoerências, os seus vazios, os seus silêncios.



Não obstante, é necessário identificar em cada teoria os seus pressupostos, suas contradições e suas ambigüidades, pois esses elementos oferecem pistas muito relevantes para compreendermos as suas limitações e potencialidades, e também para descobrirmos até que ponto nós nos identificamos com o idealismo que a inspira — porque o idealismo está sempre lá, na medida em que, como Lyra bem sabia, os fatos são irracionais e, reduzindo totalmente a eles a “idéia”, não só se rejeita o idealismo, mas também se desfibra o pensamento[7].



Tudo isso indica que a exposição fragmentada das idéias de Lyra, espalhada em seus vários textos de caráter filosófico, não significa a inexistência de um sistema. Em sentido contrário a essa interpretação, é o próprio Lyra que afirma que devemos buscar em sua obra um sistema, na acepção orteguiana de que “não é lícito deixar as opiniões como bóias soltas e sem ligamento racional dumas com as outras” [8].Um sistema obviamente aberto e histórico, condizente com suas pretensões dialéticas, mas ainda assim uma obra que tem por pretensão de unidade e o objetivo de constituir uma ontologia dialética capaz de servir como base para uma concepção emancipatória do direito.



A primeira parte deste artigo pretende realizar uma reconstrução desse sistema, elaborando um mosaico a partir das peças encontradas especialmente nos textos Por um direito sem dogmas (1980), O que é direito (1982), Normas jurídicas e outras normas sociais (1982), Karl, meu amigo: diálogo com Marx sobre o Direito (1983), e Desordem e processo (1987). Creio que é possível fazer essa elaboração sistemática sem cair em uma redução artificial das idéias de Lyra a um sistema que não lhes serve, pois essa reconstrução tem justamente como objetivo conferir à teoria dialética do direito o caráter sistemático que Lyra pretendia que ela tivesse.



A segunda parte do artigo tem o objetivo de realizar a negação, mostrando as limitações da teoria de Lyra e apontando nela as imperfeições que são incompatíveis com o plano expresso pelo seu autor, bem como identificando os pressupostos teóricos em que se assenta.



Por fim, homenageando a perspectiva dialética de Lyra, pretendo realizar a negação da negação, buscando os pontos da obra de Lyra que, utilizando da metáfora de Sara Côrtes, não restaram represados em seu momento histórico[9] e que ainda podem servir presentemente como base teórica ou como inspiração para a teoria e a práxis jurídicas contemporâneas.







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[1] Lyra Filho, Karl, meu amigo, p. 35.



[2] Lyra Filho, Por que estudar direito, hoje?, p. 22.



[3] Lyra Filho, Karl, meu amigo, p. 52.



[4] Lyra Filho, Karl, meu amigo, p. 52.



[5] Lyra Filho, Karl, meu amigo, p. 77.



[6] Lyra Filho, Karl, meu amigo, p. 94.



[7] Lyra Filho, Karl, meu amigo, p. 94



[8] Lyra Filho, A reconciliação de Prometeu, p. 20.



[9] Côrtes, A dignidade política do direito, p118.

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