terça-feira, 17 de agosto de 2010

A Lei Ficha Limpa e as contas dos chefes do Poder Executivo

Postado em 17/08/2010
RODRIGO LAGO

1 Introdução

A Lei Complementar n° 64/90 considera inelegíveis para quaisquer cargos aqueles que tiverem rejeitadas contas relativas a exercício de cargos ou funções públicas exercidos anteriormente. Desde 2006, quando o TSE reviu a sua jurisprudência no julgamento do RO n° 912 (Acórdão de 24/08/2006, Relator Min. FRANCISCO CESAR ASFOR ROCHA, PSESS 24/08/2006), ”reescrevendo” a Súmula TSE n° 01, definindo que somente uma decisão judicial poderia suspender esta inelegibilidade, e não apenas a propositura de medida judicial, é ela a maior responsável pelo indeferimento de registro de candidaturas.

O exame desta causa de inelegibilidade transborda o direito eleitoral, passando pelo debate sobre o direito constitucional e o direito administrativo. É que esta inelegibilidade decorre do exercício do controle externo dos gastos públicos, que é matéria estranha ao direito eleitoral. Antes de aprofundá-la, é necessário conhecer o papel constitucional dos tribunais de contas.

O Tribunal de Contas da União é um órgão auxiliar do Poder Legislativo no exercício do controle externo da União Federal, precisamente quanto às contas prestadas anualmente pelo Presidente da República. Mas em determinadas hipóteses o TCU funciona como órgão autônomo, a decidir definitivamente sobre algumas questões, como as contas prestadas por dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos. Além destas funções constitucionais, há outras que não dizem respeito ao tema posto neste debate.

Ao instituir o TCU, a Constituição traçou o modelo institucional a ser observado pelos sistemas de controle externo dos demais entes federados. Assim, os tribunais de contas dos estados, e os tribunais de contas dos municípios, ou municipais, onde há, devem guardar simetria com a sistemática do TCU, de órgão auxiliar ao julgamento das contas anuais do Chefe do Poder Executivo, ou de órgão autônomo no julgamento dos demais gestores públicos.

Os tribunais contas dos estados logo afirmaram a existência de uma cisão das contas anuais em contas de gestão e contas de governo. Segundo essa interpretação constitucional, seriam contas de gestão aquelas dos ordenadores de despesas, ainda que titulares de mandato eletivo de Chefe do Poder Executivo. De outro lado, por contas de governo ter-se-ia apenas a regularidade das contas, a observância dos percentuais mínimos constitucionais e legais de aplicação orçamentária em determinadas áreas, e repasse aos demais poderes.

A tese não vingou, esbarrando no Supremo Tribunal Federal, para quem em qualquer circunstância é do Poder Legislativo a competência para o julgamento definitivo das contas prestadas pelos chefes do Poder Executivo, funcionando os tribunais de contas como órgãos meramente auxiliares no âmbito de cada esfera de poder: federal, estadual ou municipal.

Vez por outra, porém, se tenta reabrir esse debate, especialmente no que diz respeito à citada inelegibilidade decorrente da rejeição de contas públicas, de que trata o art. 1°, I, g da LC 64/90. Em geral, o Ministério Público Eleitoral provoca a Justiça Eleitoral para admitir como suficiente à esta causa inelegibilidade decisões dos tribunais de contas, ainda que não sujeitas ao julgamento político do Poder Legislativo. E a pretensão sempre esbarrou, também, na hermenêutica constitucional há tempos afirmada na jurisprudência do STF, e reproduzida pela jurisprudência do TSE.

Eis que surge a LC 135/10 a alterar a redação do art. 1°, I, g da LC 64/90, positivando essa interpretação constitucional que nunca fora acolhida pelo STF. Resta analisar a conformação constitucional deste novo dispositivo, tema que é objeto deste trabalho.

2 A inelegibilidade da nova alínea g, repaginada pela Lei Ficha Limpa

O art. 1°, I, g da LC 64/90 tinha a seguinte redação:

LC 64/90 – redação originária

Art. 1º São inelegíveis:

I – para qualquer cargo:

g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se a questão houver sido ou estiver sendo submetida à apreciação do Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 5 (cinco) anos seguintes, contados a partir da data da decisão;

Por sua vez, a LC n° 135/10 alterou o texto do art. 1°, I, g , da LC n° 64/90:

LC 64/90 com redação da LC 135/10

Art. 1º São inelegíveis:

I – para qualquer cargo:

g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição;

A nova redação da alínea g, do art. 1°, I da LC n° 64/90, impressa pela LC n° 135/10, trouxe consigo grandes mudanças no texto. A primeira delas foi a delimitação do conceito de insanabilidade dos motivos ensejadores da rejeição das contas. Antes, bastava que fossem rejeitas por motivos insanáveis, sendo este último um conceito aberto ao intérprete. A partir da aplicação da LC 135/10 não bastará a insanabilidade, sendo necessário que esta configure ato doloso de improbidade. Outra modificação efetiva foi quanto ao prazo de inelegibilidade, outrora de cinco anos, e agora de oito anos.

Resta, porém, a análise quanto à parte final da nova alínea g, que remete à aplicação do art. 71, II, da Constituição, “a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição”. A redação desse dispositivo reabre a discussão já bastante superada pelo STF e pelo TSE, sobre se teriam os tribunais de contas, enquanto órgãos auxiliares do controle externo, competência para julgar as contas dos chefes do Poder Executivo, enquanto ordenadores de despesas.

3 A interpretação constitucional quanto ao papel dos tribunais de contas na análise das contas de Chefe do Poder Executivo

Para melhor compreensão do alcance do novo texto infraconstitucional é necessário primeiro a análise do texto constitucional e reavivar a jurisprudência formada no Supremo Tribunal Federal, com reflexo no Tribunal Superior Eleitoral, acerca do órgão ao qual compete o julgamento das contas públicas prestadas pelos chefes do Poder Executivo.

E é assim porque, ordinariamente, a Constituição da República distribui as competências entre os órgãos estatais. É ela o texto maior do ordenamento jurídico pátrio. E a Carta da República optou por um regime especial de controle dos atos e da responsabilização dos agentes políticos.

Assim dispõe a Constituição da República na parte que interessa ao presente debate:
Art. 31. A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno do Poder Executivo Municipal, na forma da lei.

§ 1º. O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas, dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver.

§ 2º. O parecer prévio, emitido pelo órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar, só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal.

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:

I – apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento;

II – julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;

Art. 75. As normas estabelecidas nesta seção aplicam-se, no que couber, à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios.

Pela leitura dos dispositivos acima transcritos, não há margem para dúvidas: quem deve julgar as contas dos chefes do Poder Executivo, em todas as suas esferas, é o Poder Legislativo. As contas dos prefeitos são julgados pelas câmaras municipais. Do mesmo modo se dá com as contas dos governadores, cujo julgamento compete às assembléias legislativas. Por último, compete ao Congresso Nacional o julgamento das contas prestadas pelo Presidente da República.

Assim, sempre que se tratar de Chefe do Poder Executivo, o órgão competente será o Poder Legislativo. A função dos tribunais de contas nesse controle externo é de mero órgão auxiliar. Sobre o tema a doutrina de José Afonso da Silva:
AUXÍLIO DO TRIBUNAL DE CONTAS. O exercício do controle externo pertence ao Congresso Nacional com o auxílio do Tribunal de Contas. Significa que o titular da função de fiscalização é o Congresso Nacional. (…) O controle externo é basicamente controle de caráter político no Brasil, mas sujeito a prévia apreciação técnico-administrativa do Tribunal de Contas, que tem apenas a natureza de órgão auxiliar do Poder Legislativo no que tange à função de fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da Administração direta e indireta. (SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 1ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 466)

Por certo, em se tratando de outro agente, público ou mesmo particular, a competência para a análise das contas é do próprio Tribunal de Contas respectivo, conforme for o caso de recursos federais, estaduais ou municipais. Mas essa não é a situação dos chefes do Poder Executivo, seja de que esfera for. Pretendeu o constituinte atribuir a estes (prefeitos, governadores e o Presidente da República) um julgamento político. Tem-se, portanto, que aos representantes do povo (membros dos parlamentos) compete analisar, em instância definitiva, e de forma exclusiva, as contas do Chefe do Poder Executivo. Somente ao Poder Legislativo é dado emitir julgamento sobre as contas apresentadas por Chefe do Poder Executivo.

O Supremo Tribunal Federal, precípuo guardião da Constituição da República (CR/88, art. 102, caput), teve oportunidade de assentar isso em sua jurisprudência:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO – ACÓRDÃO DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL – FUNDAMENTO LEGAL E CONSTITUCIONAL. O fato de o provimento atacado mediante o extraordinário estar alicerçado em fundamentos estritamente legais e constitucionais não prejudica a apreciação do extraordinário. No campo interpretativo cumpre adotar posição que preserve a atividade precípua do Supremo Tribunal Federal – de guardião da Carta Política da Republica. INELEGIBILIDADE – PREFEITO – REJEIÇÃO DE CONTAS – COMPETÊNCIA. Ao Poder Legislativo compete o julgamento das contas do Chefe do Executivo, considerados os três níveis – federal, estadual e municipal. O Tribunal de Contas exsurge como simples órgão auxiliar, atuando na esfera opinativa – inteligência dos artigos 11 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, 25, 31, 49, inciso IX, 71 e 75, todos do corpo permanente da Carta de 1988. Autos conclusos para confecção do acórdão em 9 de novembro de 1995. (STF – RE 132747/DF – T.P. – Rel. Min. Marco Aurélio de Mello – DJU 07.12.1995, p. 42610)

Neste julgamento, o Min. Ilmar Galvão consignou que a definição da competência para o julgamento de contas públicas prestadas pelos chefes do Poder Executivo parte diretamente do texto da Constituição:

É certo que, nos votos transcritos e, ainda, no trecho do voto condutor do acórdão do TRE-Sergipe, incorporado ao seu voto pelo eminente Ministro relator do acórdão impugnado, distinguiu-se claramente a competência do Tribunal de Contas, para as contas anuais do Prefeito, da competência da mesma Corte, para apreciação de contatos individualmente considerados, celebrados pela Municipalidade. Tal circunstância, todavia, não é bastante para afastar a questão constitucional, já que o reconhecimento da competência, no segundo caso, de interesse no julgamento, resultou de interpretação da Carta Federal. (STF – RE 132747/DF – T.P. – Rel. Min. Marco Aurélio de Mello – Trecho do voto do Min. Ilmar Galvão – DJU 07.12.1995, p. 42610)

O que ocorre no caso da LC 135/10, a Lei Ficha Limpa, é a flagrante tentativa de se alterar a interpretação constitucional feita pelo STF, e acolhida pelo TSE, através da via legislativa. Pretende-se, à revelia da interpretação constitucional consolidada, reconhecer autoridade nas decisões dos tribunais de contas que julgam as contas de chefes do Poder Executivo, como se suficientes fossem para a inelegibilidade, na parte que se refere às denominadas contas de gestão.

Entretanto, ao contrário do que defendem alguns, o Congresso Nacional não é dotado do poder de ditar a interpretação autêntica do texto constitucional. Aliás, a interpretação autêntica da Constituição cabe ao seu precípuo guardião, que é o Supremo Tribunal Federal (CR/88, 102), e de forma privativa. E isso já foi expressamente afirmado pelo Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 2797, que tem a seguinte ementa:

[...] Lei 10.628/2002, que acrescentou os §§ 1º e 2º ao artigo 84 do C. Processo Penal: pretensão inadmissível de interpretação autêntica da Constituição por lei ordinária e usurpação da competência do Supremo Tribunal para interpretar a Constituição: inconstitucionalidade declarada. 1. O novo § 1º do art. 84 CPrPen constitui evidente reação legislativa ao cancelamento da Súmula 394 por decisão tomada pelo Supremo Tribunal no Inq 687-QO, 25.8.97, rel. o em. Ministro Sydney Sanches (RTJ 179/912), cujos fundamentos a lei nova contraria inequivocamente. 2. Tanto a Súmula 394, como a decisão do Supremo Tribunal, que a cancelou, derivaram de interpretação direta e exclusiva da Constituição Federal. 3. Não pode a lei ordinária pretender impor, como seu objeto imediato, uma interpretação da Constituição: a questão é de inconstitucionalidade formal, ínsita a toda norma de gradação inferior que se proponha a ditar interpretação da norma de hierarquia superior. [...] (STF – ADI 2797, Relator Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 15/09/2005, DJ 19-12-2006 PP-00037 EMENT VOL-02261-02 PP-00250)

No julgamento da ADI 2797, o Supremo Tribunal Federal rechaçou a hipótese do Congresso Nacional assumir o papel de intérprete autêntico do texto constitucional. Para isso, o STF declarou inconstitucionais dispositivos de uma lei que pretendia rever, pela via normativa infraconstitucional, a jurisprudência constitucional do próprio STF.

Naquele caso, além de estender aos tribunais a competência para julgar originariamente as ações por ato de improbidade administrativa quando réus autoridades com foro por prerrogativa funcional, a lei ressuscitava o entendimento expresso no verbete da Súmula STF n° 394, já cancelada pelo próprio STF ao revisitar o tema em sua jurisprudência. Nessa situação, o foro especial decorrente inerente ao cargo se prorrogaria, mesmo após a cessação do exercício do cargo.

Mas o STF assentou que este poder não é dado ao legislador. Não pode o Congresso Nacional fazer às vezes de Corte Constitucional para alterar a interpretação do texto da Constituição. Essa matéria é de competência precípua do próprio Supremo Tribunal Federal.

Retornando ao ponto ora posto em debate, tem-se assim que não altera a situação jurídica a nova redação da causa de inelegibilidade prevista na alínea g, do art. 1°, I da LC 64/90.

Ainda no julgamento do citado Recurso Extraordinário n° 132747, pretendia o Ministério Público afirmar que a indagação sobre a existência desta causa de inelegibilidade, ainda com a redação primitiva da LC 64/90, não perpassava pelo texto constitucional. Mas essa argumentação restou superada pela seguinte passagem do voto do Min. Marco Aurélio:

Em primeiro lugar, analiso a objeção do Ministério Público Federal, fundada na óptica de que a discussão do tema constitucional ocorre por via reflexa, ou seja, a partir da interpretação que se dê a texto da Lei Complementar acima citada. Estou convencido da total impropriedade do que articulado. Se de um lado é correto dizer-se que o Tribunal Superior Eleitoral apreciou a controvérsia à luz da citada Lei Complementar, de outro forçoso é admitir-se que não se limitou ao referido exame. Em vista das balizas objetivas da peça que ensejou o pronunciamento (folha 1.211), adentrou a Corte de origem tema disciplinado na Lei Básica Federal e, com isto, interpretou preceitos nesta inseridos. A partir de determinado aspecto fático – a valia do crivo do Tribunal de Contas, a ensejar a inelegibilidade, relativamente ao que enquadrou como contas do ora Recorrente prestadas na condição de Prefeito – assentou que os textos constitucionais em questão reservam ao citado Órgão mais do que a elaboração de peça opinativa – parecer – ou seja, a própria definição do merecimento das contas. (STF – RE 132747/DF – T.P. – Rel. Min. Marco Aurélio de Mello – Trecho do voto do Min. Relator – DJU 07.12.1995, p. 42610)

O Min. Celso de Mello foi igualmente preciso ao apontar que o órgão competente para o julgamento das contas dos chefes do Poder Executivo – na hipótese se tratava de um prefeito – era apenas o Poder Legislativo:

As contas públicas dosChefes do Executivo devem sofrer o julgamento, final e definitivo, da instituição parlamentar, cuja atuação, no plano do controle externo da legalidade e regularidade da atividade financeira do Presidente da República, dos Governadores e dos Prefeitos Municipais, é desempenhada com a intervenção ad coadjuvandum do Tribunal de Contas.

A decisão irrecorrível a que alude a norma inscrita no art. 1°, I, “g”, da Lei Complementar n° 64/90 – quando se tratar de Chefe do Poder Executivo – há de ser, unicamente, o pronunciamento emanado das Casas legislativas, com o auxílio do Tribunal de Contas respectivo.

A apreciação das contas prestadas pelo Chefe do Poder Executivo – que é a expressão visível da unidade institucional desse órgão da soberania do Estado – constitui prerrogativa intransferível do Legislativo, que não pode ser substituído pelo Tribunal de Contas, no desempenho dessa magna competência, que é de extração constitucional.

A regra de competência inscrita no art. 71, inciso II, da Carta Política – que submete ao julgamento desse importante órgão auxiliar do Poder Legislativo as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta – não legitima a atuação exclusiva do Tribunal de Contas quando se tratar de apreciação das contas do Chefe do Executivo, pois, em tal hipótese, terá plena incidência a norma especial consubstanciada no inciso I desse mesmo preceito constitucional. (STF – RE 132747/DF – T.P. – Rel. Min. Marco Aurélio de Mello – Trecho do voto do Min. Celso de Mello – DJU 07.12.1995, p. 42610)

Durante esta assentada de julgamento, dez ministros se manifestaram expressamente sobre o tema, ficando vencido apenas o Min. Carlos Velloso, formando a maioria os demais. E restou assentado por todos a competência exclusiva do Poder Legislativo para o julgamento das contas dos chefes do Poder Executivo, ainda quando tenham agido como ordenadores de despesa.

O Tribunal Superior Eleitoral também já enfrentou este tema após o julgamento deste leading case pelo STF. E em inúmeros julgados posteriores sempre reconheceu a competência do Poder Legislativo para o julgamento das contas dos chefes do Poder Executivo, ainda quando tenham agido como ordenadores de despesa:

Registro de candidatura. Inelegibilidade. Art. 1º, I, g, da Lei Complementar nº 64/90. Competência. – A competência para o julgamento das contas do prefeito é da Câmara Municipal, cabendo ao Tribunal de Contas a emissão de parecer prévio, o que se aplica tanto às contas relativas ao exercício financeiro, prestadas anualmente pelo Chefe do Poder Executivo, quanto às contas de gestão ou atinentes à função de ordenador de despesas. Agravo regimental a que se nega provimento. (TSE – AgRg em REspe nº 3964781, Acórdão de 04/05/2010, Relator(a) Min. ARNALDO VERSIANI LEITE SOARES, DJE 23/06/2010, p. 23)

Note-se que essa é uma decisão recentíssima, já tomada com a atual composição do Tribunal Superior Eleitoral, sendo fruto de interpretação constitucional. Também no mesmo sentido, tem-se o AgRg em REspe 30.516 (Rel. Min. Marcelo Ribeiro, PSESS 25.11.2008) e o AgRg em REspe 32.827 (Rel. Min. Felix Fischer, PSESS 12.11.2008)

Assim, quanto aos recursos próprios municipais (excluindo-se apenas as transferências voluntárias dos outros entes), a competência é exclusiva da Câmara Municipal respectiva, não havendo que se falar em cisão das contas como contas de gestão e constas de governo. A mesma leitura se faz com relação aos governadores e ao Presidente da República. Basta ver que a CR/88, em seu art. 71, I, que deve ser estendido aos tribunais de contas dos estados e aos órgãos de análise das contas dos municípios (onde há tribunal de contas municipal ou tribunal de contas dos municípios), não se vê ressalva quanto ao tipo de contas públicas.

Portanto, quanto ao Presidente da República, é o Congresso Nacional o único órgão competente para julgar as suas contas, quer tenha agido como governante, quer tenha agido como ordenador de despesas. Quanto aos governadores, só podem ser julgados, em caráter de exclusividade, pela Assembléia Legislativa respectiva, quando se tratar de controle externo estadual. Os governadores, portanto, só serão julgados como ordenadores de despesas pelo TCU, e apenas quanto aos recursos de transferência voluntária da União (não se incluindo as transferências constitucionais, porque incorporadas ao patrimônio do estado).

Em terceiro, quanto aos prefeitos, é de competência exclusiva da respectiva Câmara Municipal o julgamento de suas contas, sejam elas de governo ou de gestão, quando se tratar de recursos municipais. E os chefes do Poder Executivo só serão julgados pelos tribunais de contas dos estados ou da União quando funcionarem como ordenadores de despesas de recursos alheios, ou seja, objeto de transferência voluntária (dentre os quais não se incluem os recursos de transferência constitucional, porque incorporados ao patrimônio municipal, e geridos como recursos municipais).

Tem-se assim que no âmbito do seu próprio controle externo, os chefes do Poder Executivo são julgados exclusivamente pelo Poder Legislativo, qualquer que seja a função que desempenhem no governo.

Assim, a função destes tribunais de contas é apenas a de emitir parecer prévio, como peça opinativa para o julgamento pelo Poder Legislativo (verdadeiro órgão competente).

Tem-se, portanto, que o órgão competente no âmbito do controle externo municipal contas do prefeito é o Poder Legislativo, sempre. A situação é a mesma quando se tem os governadores no âmbito do controle externo estadual e o Presidente da República no plano federal. E por este fundamento os tribunais de contas não possuem competência constitucional para o julgamento das denominadas contas de gestão de prefeitos, de governadores e do Presidente da República. Não há espaço no texto constitucional para cingir as contas prestadas anualmente, sujeitando o gestor público a duplo julgamento (técnico pelo tribunal de contas respectivo e político pelo Poder Legislativo).

A Constituição da República é expressa ao prever o processo de controle e fiscalização da aplicação de recursos públicos. O caso das contas de governo do Poder Executivo não se enxerga maiores – aquelas relativas ao exercício de cargo de chefia de poder -, o tratamento é diferenciado. E tem uma razão de ser: é que se trata de pessoa eleita diretamente pelo povo, como no caso dos chefes dos poderes executivos das mais diversas esferas, federal, estaduais e municipais, sendo razoável que seja julgada igualmente pelo povo, no caso através de seus representantes legitimamente eleitos.

Por essa leitura se depreende que o órgão competente de que trata o artigo 1º, I, g, da Lei Complementar nº 64/90, no caso de contas de governo do Poder Executivo, é o Poder Legislativo respectivo, conforme for cada esfera de governo. Quanto às contas do Poder Executivo municipal, a Constituição novamente foi expressa ao afirmar a competência do Tribunal de Contas apenas como órgão auxiliar, segundo o §1º, do referido artigo 31: “O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas, dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver”.

Nesse processo de controle externo, o Tribunal de Contas apenas emite parecer prévio a ser analisado pelo órgão competente quando do julgamento, que no caso dos prefeitos é feito pela respectiva Câmara Municipal. Conclui-se que, para ser contrariado, em qualquer sentido, seja na hipótese do parecer opinar pela rejeição, seja pela aprovação, será necessário o voto de dois terços da Câmara (CR/88, art. 31, §2º). Mas é necessário um julgamento pelo Poder Legislativo, e como afirmado no citado voto do Min. Celso de Mello no RE n° 132747, se trata de “prerrogativa intransferível”.

Portanto, a decisão irrecorrível de que trata o artigo 1º, I, g, da Lei Complementar nº 64/90 é sem dúvida alguma o decreto legislativo expedido pelo Poder Legislativo. Esse decreto legislativo deverá espelhar necessariamente o conteúdo do parecer prévio, exceto se dois terços dos membros tiverem votado em sentido contrário. Portanto, é requisito para a configuração da inelegibilidade o referido decreto legislativo, representativo do julgamento pelo poder legislativo, e que rejeite as contas públicas. É este o ato que pode ensejar a inelegibilidade de um ex-prefeito por contas irregulares.

O dispositivo contido na nova alínea g do art. 1°, I da LC 135/10 é, portanto, inconstitucional na medida em que não excepciona o Presidente da República do rol de mandatários sujeitos ao controle externo da União pelo Tribunal de Contas da União. Para conformá-lo ao texto constitucional, à exceção da situação do Presidente da República, poder-se-ia argumentar que a sua remissão é feita apenas ao art. 71, II da Constituição da República, que trata do controle externo da União. E é certo que, no âmbito do controle externo da União, tanto os governadores como os prefeitos são julgados pelo TCU. É que não se cogitaria a hipótese do TCU emitir um parecer prévio a ser julgado por uma Assembléia Legislativa ou por uma Câmara Municipal.

4 Conclusão

Há manifesta inconstitucionalidade na expressão “sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição”, inserida no art. 1°, I, g da LC 64/90 pela LC n° 135/10, em face do disposto no arts. 31, caput e §§, e 71, I, e 75 todos da Constituição da República. Recomenda-se a aplicação da técnica de decisão de interpretação conforme, sem redução do texto, para assentar que esse dispositivo não alcança as contas prestadas pelo Presidente da República.

Deve-se assentar ainda que, quanto aos governadores e prefeitos, o dispositivo não se aplica quando em jogo o controle externo da respectiva esfera de poder, ou seja, quando se tratar de recursos do próprio ente federado governado. No âmbito de cada controle externo, o respectivo chefe do Poder Executivo é julgado tão só pelo Poder Legislativo, sendo o tribunal de contas mero órgão auxiliar, cujo parecer exige pronunciamento qualificado para ser contrariado, mas não prescinde de um julgamento político.

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RODRIGO LAGO é advogado, Conselheiro Seccional da OAB/MA, Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/MA e pós-graduando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).


Categoria: Artigo | Tags: alínea g, Arnaldo Versiani, chefe do Poder Executivo, contas de gestão, contas de governo, controle externo, Félix Fischer, inconstitucionalidade, LC 135/10, LC 135/2010, Lei das Inelegibilidades, Lei Ficha Limpa, Marcelo Ribeiro, Ministro Celso de Mello, Ministro Marco Aurélio, RE 132747, STF, TCE, TCU, TSE

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