sexta-feira, 23 de julho de 2010

Limpando a ficha no STF?

DAMARES MEDINA

Em 1994, a Emenda Constitucional de Revisão (ECR) nº 4 ampliou as hipóteses de inelegibilidade originalmente previstas na Constituição, com o objetivo de proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, considerando-se a vida pregressa do candidato. No quadrante jurisdicional, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) condicionou a aplicação imediata da Constituição, bem como a criação de novas causas de inelegibilidade, à edição de nova lei complementar. No plano político, o amadurecimento das instituições democráticas e a crescente transparência no trato da coisa pública fizeram emergir sucessivas denúncias de corrupção que denotavam o enraizamento de uma cultura antirepublicana.

O Poder Legislativo, por intermédio de nossos representantes eleitos, respondeu a esse quadro social com a aprovação da Lei da Ficha Limpa, que impede a candidatura de políticos condenados por órgãos judiciais colegiados. O Poder Executivo, por intermédio do presidente da República, não se olvidou do importante papel de sancionar a lei em tempo hábil para sua aplicação ainda nas eleições deste ano. O Poder Judiciário começa a se posicionar.

Para o TSE, a Lei da Ficha Limpa já é válida para as eleições deste ano, alcançando, inclusive, os candidatos condenados antes da publicação da norma. Como presidente do TSE, o ministro Ricardo Lewandowski aplicou a Lei da Ficha Limpa para negar sete pedidos de liminares que pretendiam a suspensão da inelegibilidade. No Supremo Tribunal Federal (STF), os ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Carlos Ayres já se pronunciaram liminarmente sobre a aplicação da Lei da Ficha Limpa.

Gilmar Mendes e Dias Toffoli suspenderam os efeitos de duas condenações para afastar a inelegibilidade e garantir o registro de candidatos considerados ficha suja. Os argumentos podem ser assim sintetizados: (1) a própria Lei da Ficha Limpa (art. 26-C) autoriza o órgão colegiado incumbido do recurso a suspender cautelarmente a inelegibilidade; (2) a regra colegial estaria excepcionalmente afastada pela urgência decorrente do recesso forense e do encerramento do prazo para registro; (3) caráter materialmente singular da decisão motivadora da inelegibilidade decorrente do foro específico do parlamentar. Ademais, segundo Dias Toffoli, a Lei da Ficha Limpa teria elementos jurídicos passíveis de relevantes questionamentos no plano hierárquico e axiológico, a suscitar dúvidas acerca da sua adequação à Constituição.

No exercício da presidência do STF, Carlos Ayres aplicou a Lei da Ficha Limpa para negar seis pedidos de suspensão da inelegibilidade. As decisões denegatórias fundamentaram-se, essencialmente, na impossibilidade de decisão monocrática suspender inelegibilidade imposta por decisão colegiada: “Se não é qualquer condenação judicial que torna um cidadão inelegível, mas unicamente aquela decretada por um ‘órgão colegiado’, apenas o órgão igualmente colegiado do tribunal é quem pode suspender a inelegibilidade”. Em agosto próximo, findo o recesso e retomadas as atividades forenses, o STF decidirá sobre a ratificação ou não das decisões cautelares proferidas.

Nesse equilíbrio instável entre os poderes, o STF exerce inegável protagonismo, dado o monopólio que detém da jurisdição constitucional, traduzível no bônus e no ônus de acertar ou errar por último. Em seu irrecusável compromisso institucional, o STF oferece a melhor interpretação da Constituição plasmada em seu contexto social: um projeto aberto em constante realização. Nesse quadrante emerge um dos principais paradoxos das democracias constitucionais: eventual déficit de legitimidade das cortes constitucionais que são compostas por membros nomeados, ao contrário dos órgãos representativos eleitos pelo povo em sufrágio universal.

O enfrentamento desse aparente paradoxo passa pelas eleições de outubro próximo. A resposta definitiva sobre a aplicação ou não da Lei da Ficha Limpa virá das urnas: instrumento para o qual converge todo o poder republicano que emana do povo. Em uma coalizão de forças, as agremiações partidárias devem negar guarida a candidatos criminosos e a sociedade civil organizada deve continuar o movimento que se iniciou com a propositura do projeto Ficha Limpa, divulgando todas as informações sobre as fichas que sujam o cenário político brasileiro. Por fim, mas não menos importante, caberá a nós, eleitores, a maior contribuição para o banimento dos políticos desonestos e restauração da nossa cultura republicana: não vote em político ficha suja!

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DAMARES MEDINA é mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e professora e coordenadora do curso de Pós-Graduação em Direito Previdenciário do IDP. É advogada e autora do livro Amicus Curiae: Amigo da Corte ou Amigo da Parte?

Artigo publicado no jornal Correio Braziliense, edição de 8/7/2010.

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Categoria: Artigo | Tags: anterioridade eleitoral, Corte Constitucional, Damares Medina, democracia, direitos políticos, efeito suspensivo, eleições 2010, ficha limpa, inelegibilidade, jurisdição constitucional, LC 135/10, LC 64/90, legislador, Os Constitucionalistas, papel contramajoritário, probidade administrativa, STF, sufrágio universal, Supremo Tribunal Federal, Tribunal Superior Eleitoral, TSE, vida pregressa

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