sexta-feira, 16 de julho de 2010

A VOTAÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS NA INTERPRETAÇÃO DO PRESIDENTE DA CÂMARA DOS DEPUTADOS



Marcos Vasconcelos

Vem à baila a mais nova tensão entre os Poderes da República. Agora, na forma de se conter uma disparidade em relação às funções de cada um deles no cenário do Estado Constitucional e no que advém dele na convivência democrática entre os poderes.
Tal celeuma emergiu da recente decisão do Presidente da Câmara, Deputado MICHEL TEMER, quando este deu diferente interpretação ao art. 62 da Constituição Federal, que trata da edição de medidas provisórias.
Quanto ao trancamento da pauta da Câmara o Presidente TEMER asseverou que a interpretação que se dá à expressão "todas as deliberações legislativas" faz referência às deliberações ordinárias . Apenas as leis ordinárias é que poderiam trancar a pauta. Mesmo assim, há leis ordinárias que estão excepcionadas (as do inciso I do art. 62, por exemplo). Tal pensamento tiraria as matérias relacionadas no inciso I do art. 62 do jugo do trancamento. Não só elas, mas também as demais proposições, tais como aquelas as quais as medidas provisórias não podem alcançar: leis complementares, PECs, decretos legislativos e resolução. Assim, por esse motivo, a interpretação a ser feita de forma sistêmica, abriria a pauta, mesmo em sessões extraordinárias da Casa para, cumprindo-se o princípio da autonomia entre os Poderes, ter o Legislativo condições de exercer a sua função constitucional. A nova interpretação movimentou o mundo constitucional brasileiro, alterando todo um cenário sedimentado pela interpretação elaborada por um velho paradigma.
O Presidente TEMER, ao decidir sobre uma questão de ordem apresentada pelo Deputado Regis de Oliveira, informou que o constituinte originário de 1988 estabeleceu absoluta igualdade entre os Poderes do Estado, eliminando a ordem jurídica anterior, que privilegiava o Poder Executivo. A Constituição de 1967 dava poderes ao Presidente da República que extrapolavam a típica função do Executivo.1
Previu a nova Constituição a medida provisória como forma de "substituição" a um instrumento anteriormente muito utilizado pelo Poder Executivo e que desequilibrava as funções do Estado: o decreto-lei.
A edição de medidas provisórias foi moldada pelo constituinte originário com limitação de poderes e forma diferenciada de validação. Estas têm que passar pelo crivo do Legislativo para, convertidas, tornarem-se leis, ou, caso contrário, não votadas, não convertidas em lei ou não aprovadas caírem no limbo.
Com o decreto-lei, o efeito era o oposto: não votados no prazo determinado pela Constituição anterior, estariam os decretos inseridos em definitivo no ordenamento jurídico pátrio. Era a primazia do Poder Executivo.
A medida provisória veio ao mundo como um instrumento a ser utilizado para casos raros, de exceção, considerados urgentes e relevantes para que se mantivesse a governabilidade diante de situações consideradas críticas. Porém, mesmo assim, ao Legislativo caberia, num primeiro momento, fazer o juízo de admissibilidade e, se fosse o caso, aprová-la na forma em que chegasse ao Congresso ou, alterando o feito original, convertê-la em lei, entregando à sociedade nova norma, iniciada no Executivo, mas que passou pela análise do Legislativo, obtendo legitimidade e eficácia.
Pensou, assim, o constituinte originário em garantir um instrumento de governabilidade ao Executivo, ao mesmo tempo em que mantivesse o Legislativo com poderes de fiscalizar tais medidas. Ao poder de emendá-las, passou o Legislativo a cumprir importante papel na sua conversão em lei, além de deter o poder de, ao não apreciá-la no prazo constitucionalmente previsto, legislar "negativamente", retirando-a do ordenamento jurídico por meio de decreto legislativo.
Nova posição emergiu, ainda, com a aprovação da EC nº 32/01, que deu azo à redação atual do § 6º do art. 62 da Carta de 1988, disciplinando expressamente o sobrestamento de todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando a medida provisória que não for apreciada em até 45 dias de sua publicação.
O que inicialmente foi uma solução, tempos depois passou a ser um gravíssimo problema: as medidas provisórias proliferaram e, aos poucos, perderam o seu caráter de relevância e urgência (sentimento que deixou de abranger o semântico, tornando-se cada vez mais subjetivo).
Criou-se nova forma de legislar: deixada em segundo plano a função constitucional precípua do Legislativo, que ficou novamente à mercê do Executivo. Ao encontrar dificuldades em dar andamento ao processo legislativo ordinário, o legislador começou a ocupar-se do "veículo" medidas provisórias para promover o enxerto de inúmeros dispositivos, em forma de emendas, que abrangessem interesses que não aqueles a priori determinados.
Assim, as medidas provisórias, que tinham como intenção inicial um propósito, ao fim de sua tramitação tornaram-se leis com matérias completamente diversas no mesmo texto. Passou-se a inovar o processo legislativo por meio de emendas "alienígenas": o famoso "contrabando" no texto2, verdadeira aberração, um "jeitinho" encontrado no Parlamento para poder legislar apesar das medidas provisórias.
Nesse contexto, a primeira indagação que se faz é a seguinte:
Não haveria matérias mais urgentes e mais relevantes para o País, em discussão no Congresso, do que aquelas para lá enviadas por medidas provisórias?
Como não poderia deixar de ser, Executi­vo e Judiciário passaram a esteio da sociedade por conta da anomia resultante da não atuação do Legislativo. Além das medidas provisórias, são mais de mil os mandados de injunção perpetrados contra o Congresso Nacional3, o que gera um diagnóstico, entre tantos, o mais veemente, da inércia do Poder Legislativo.
Há um sem-número de matérias paradas no Congresso que, data vênia, pela sua importância em relação à realidade, não raras vezes tornam-se mais urgentes para a sociedade e para o Estado do que algumas medidas provisórias que aguardam deliberação. São projetos que tratam de direitos fundamentais, individuais e coletivos. A falta da votação desses projetos gera tensão na convivência Sociedade-Estado.
As PECs se acumulam obstruídas pelas MPs. Além de várias delas tratarem de direitos fundamentais, há um caso curioso: a PEC nº 511/06, que pretende disciplinar
"a edição de medidas provisórias", ironicamente, encontra-se obstruída em sua votação pelo excesso de medidas provisórias que aguardam na fila para votação.
Aguardam deliberação importantes reformas: a PEC contra o trabalho escravo; a PEC que dispõe sobre a Defensoria Pública e suas atribuições e garantias, entre outras.
Há matérias de lei complementar também aguardando para serem votadas. Uma delas, o PLP nº 59/99, estende os direitos assegurados à trabalhadora gestante, nos casos de morte desta, a quem detiver a guarda de seu filho.
Volta a pergunta:
Entre as MPs que trancam a pauta, pode-se dizer que todas elas são mais relevantes ou urgentes do que esta mostra de PECs, projetos de lei complementar e projetos de lei aqui listados?
Têm aquelas MPs maior relevância e urgência que estas proposições? A urgência e a relevância cabem a quem discernir? Por analogia, tem-se que cabe monocraticamente ao Presidente da República decidir.
Entre as medidas provisórias que já obstruíram a pauta do Congresso, encontra-se a MP nº 451, que altera a legislação tributária federal (subvenção econômica a empresas de vários ramos, inclusive as de Santa Catarina, e altera a indenização do seguro obrigatório de veículos). À guisa de exemplo, numa escala de valores, qual destas proposições teria mais relevância e urgência? O PLP nº 59/99 ou a MP nº 451?
Ou, ainda, a MP nº 454, que transfere para Roraima terras pertencentes à União em face do Projeto de Lei nº 4.862/01, que estabelece a obrigatoriedade da presença física do juiz de execuções penais em locais de motim de presos. O Projeto de Lei nº 5.829/05, que dispõe sobre a criação de 400 Varas Federais, destinadas precipuamente à interiorização da Justiça Federal de primeiro grau e à implantação dos Juizados Especiais Federais no País, não seria mais urgente do que a MP nº 454?
Momentos houve em que o Executivo brigou pela derrubada de medidas provisórias em Plenário por ser a seguinte da fila mais importante do que a primeira que estaria trancando a pauta. Este é um novo caso de trancamento de pauta especial: uma medida provisória trancando a pauta, impedindo a votação da seguinte, julgada mais urgente e relevante que a primeira. Onde estariam a urgência e a relevância da medida provisória derrubada pelo próprio editor?
A INTERPRETAÇÃO FEITA PELO DEPUTADO MICHEL TEMER
Nas democracias modernas, o exercício da interpretação constitucional é confererido à sociedade aberta (Peter Häberle); assim foi a decisão do Presidente da Câmara dos Deputados no que respeita à nova interpretação ou melhor interpretação do art. 62 da Constituição da República. Esta decisão, num primeiro momento, pode ter trazido um sentimento estranho aos operadores do direito, bem como àqueles que durante anos vêm buscando, sem sucesso, uma solução para a retomada da autonomia do Legislativo na feitura da sua agenda.
Digo estranho porque, por tudo que parece, a solução foi simples, na contramão de diversas e complicadas outras engenharias jurídicas, que paravam na encruzilhada do § 6º do art. 62 da Constituição Federal; e paravam num termo gramaticalmente forte: "(...) ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando".
Fez-se aqui um juízo de valor o mais rígido possível, levando-se a cabo que todas as deliberações legislativas estariam sobrestadas: num primeiro momento, ao que parece, quis o constituinte reformador dizer que as Casas do Congresso Nacional parariam imediatamente o seu funcionamento, para que se ativessem tão só ao exame de medidas provisórias.
E por quê? Porque, naquele momento, o que se vislumbrava era a REAL relevância e urgência das medidas provisórias. Ao legislador, bem como à sociedade, caberia entender que, não examinada a medida provisória, algo de muito grave, gravíssimo, estaria por vir e que esse algo traria perdas irrecuperáveis ao governo dos desígnios da sociedade, bem como prejuízos insanáveis ao Estado.
Essa era a visão.5 Porém, toda e qualquer deliberação feita no âmbito do Legislativo é considerada, obviamente, uma deliberação legislativa, pois por meio das deliberações, interlocutórias ou não, chegar-se-á ao produto final: norma, prima facie, função
do Congresso.
No entanto, o entendimento acima exposto foi aos poucos se transformando. No caso da Câmara dos Deputados, por exemplo, algumas deliberações legislativas escapam desta determinação, se enquadradas no caráter conclusivo das comissões, conforme prevê o art. 24, inciso II, § 1°, do RICD.6 Estas, aprovadas – e são normas da mesma natureza das medidas provisórias – automaticamente, consideram-se aprovadas pela Câmara e tomam rumo ou do Senado ou da sanção. Há aí uma discrepância não notada em relação à interpretação mais ortodoxa do art. 62, § 6º, da Constituição, um "drible" no dispositivo constitucional, uma forma de o Legislativo poder trabalhar livre da ortodoxia dada à sua interpretação.
DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
Em sua obra sobre a interpretação constitucional, INOCÊNCIO COELHO (2003) destaca algumas diretrizes que demonstram o postulado de que o ordenamento jurídico é onicompreensivo, operativo e coerente. Informa o jurista não existirem normas sobrando no texto constitucional, cabendo ao intérprete tão somente descobrir o âmbito de incidência de cada uma. Também ensina não haver conflitos entre as normas constitucionais: "eles são apenas aparentes, pois as normas foram promulgadas conjuntamente, não havendo entre si hierarquia nem ordem de precedência".
Com coerência, INOCÊNCIO COELHO assim descreve o princípio da correção funcional:
Derivado, igualmente, do cânone hermenêutico da unidade da constituição, que nele também se concretiza, o princípio da correção funcional tem por finalidade orientar os intérpretes da constituição no sentido de que, instituindo a norma fundamental um sistema coerente e previamente ponderado de repartição de competências, não podem os seus aplicadores chegar a resultados que perturbem o esquema organizatório-funcional nela estabelecido, como é o caso da separação dos poderes, cuja observância é consubstancial à própria ideia de Estado de Direito.
A aplicação desse princípio tem particular relevo no controle da constitucionalidade das leis e nas relações que, em torno dele, se estabelecem entre a legislatura e as cortes constitucionais. Com efeito, tendo em vista, de um lado, a legitimação democrática do legislador e, de outro, a posição institucional desses tribunais como intérpretes supremos da constituição, existe uma tendência que até certo ponto pode-se considerar natural ao surgimento de conflitos de interpretação entre agentes políticos para saber quem, afinal, melhor interpreta o texto constitucional e, consequentemente, aos olhos da comunidade, merece densificar os seus poderes, obviamente sem agredir a constituição.
E conclui:
Toda interpretação é sempre um resultado, entre tantos outros, a que se pode chegar em função de um determinado contexto, mas que deve ser modificado quando se alterarem as coordenadas da situação hermenêutica.7
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os primorosos ensinamentos de INOCÊNCIO COELHO fazem entender a manifestação do Presidente da Câmara dos Deputados ao aplicar a sua interpretação ao dispositivo constitucional, interpretação que chamaríamos necessariamente de política, mas, sobretudo com forte fundamento hermenêutico baseado em princípios constitucionais, conjugando-os.
Partindo-se da situação criada pela edição de medidas provisórias, que vinham impedindo a Câmara dos Deputados de atuar conforme um dos mais importantes princípios constitucionais – o do livre exercício do poder de legislar –, o Presidente Temer, diante de fatos políticos que vinham atacando, além desse, princípios constitucionais outros da maior relevância, como o da unidade da constituição, houve por bem fazer uma interpretação sistêmica da Carta Magna, formulando uma construção jurídica cujos fundamentos estão pautados no postulado maior da separação dos poderes. Não precisou ir além, a argumentos outros de hermenêutica constitucional, para demonstrar a função primária do Legislativo: legislar.
Tal interpretação, endossada pelo Ministro Celso de Mello em sede de mandado de segurança (MS nº 27.931-1/DF), criou fato novo nas relações entre os Poderes da República e demonstrou a necessidade de reequilíbrio dessas instituições. Vislumbrou o Ministro, relator da matéria, reação legítima do Parlamento a situação que ad perpetum vinha frustrando a sua atuação como Poder, na função de legislar, propiciando o regular desenvolvimento dos trabalhos legislativos em conformidade com o Texto Constitucional.8
A acertada decisão do Presidente da Câmara sanou uma tensão antiga entre poderes, com a sutileza e a simplicidade do toque do jurista com visão moderna.
Com a palavra, agora, o Pleno da Suprema Corte.
NOTAS
1 Inserto estava, nos arts. 51, § 3º e 55, § 1º, da CF/67, que os projetos de lei enviados pelo Presidente da República ao Congresso, bem como os decretos-leis por ele expedidos, podiam ser aprovados por decurso de prazo, sem deliberação parlamentar. Tal dispositivo sujeitava completamente o Poder Legislativo ao Executivo.2 Este fenômeno ocorre quando, via emenda, o Parlamento amplia o escopo da medida provisória editada, criando situações de verdadeiro caos quando da sua aprovação, descaracterizando a matéria para atender a interesses diversos que não os objetivados inicialmente com a sua edição.
3 Dados da Assessoria Jurídica da Presidência da Câmara dos Deputados. Números até março de 2009.
4 Caso emblemático também o da MP nº 439/08, que revogou a MP nº 437/08. Informação contida no site http://www.camaradosdeputados.gov.br/ , extraída em 16.04.08.5 Num primeiro momento, esta visão espraiou-se para o Real, moeda nova, instituída por meio de medida provisória e que levou dez anos para ser votada pelo Congresso – durante esse tempo, nos moldes da disposição anterior, prevista pelo constituinte originário, a medida provisória do Real foi sendo reeditada até a sua votação.6 O Regimento Interno da Câmara dos Deputados prevê, claramente, a possibilidade de projetos de lei ordinária serem examinados pelas comissões permanentes, em caráter conclusivo, dispensada a competência do Plenário para a sua votação. 7 COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional, 2.ed. revista e aumentada. Porto Alegre: Fabris, 2003
8 Em decisão monocrática, ao julgar o MS nº 27.931-DF, o Ministro Celso de Mello indeferiu o pedido de medida cautelar contra decisão do Presidente da Câmara, Deputado Michel Temer, que formalizou a sua interpretação no sentido de que o sobrestamento das deliberações legislativas, previsto no § 6º do art. 62 da CF, só se aplicaria aos projetos de lei ordinária. Voto publicado em 28.03.09.

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