quinta-feira, 29 de julho de 2010

A IMPORTÂNCIA SOCIAL DO TRIBUTO E DA ÉTICA NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO PÚBLICA:



MIGUEL SLHESSARENKO JUNIOR
Promotor de Justiça – MP/MT
Mestre em Direito Constitucional pelo IDP


I – INTRODUÇÃO

Diuturnamente a imprensa assola a sociedade brasileira com notícias de corrupção generalizada na administração pública, de todos os níveis, quase sempre associadas ao desvio ou apropriação de verbas arrecadadas para, ironicamente, serem aplicadas em políticas públicas sociais.

Ao longo do tempo percebe-se que a corrupção destrói qualquer tentativa de melhoria social e distribuição justa da renda de uma nação, posto que para cada centavo arrecadado para implantação de políticas de interesse social, tem-se a impressão de que outro centavo foi desviado.

Poder-se-ia até pensar que a rapidez com que as informações são repassadas, via telefone, fax, internet, ou diante do grande poder que os meios de comunicação exercem em nosso quotidiano, faria com que a corrupção diminuísse progressivamente, diante da fiscalização popular e da mídia.

Princípios administrativos são criados e elevados à categoria de mandamento constitucional; legislações de combate à corrupção foram editadas (leis de improbidade administrativa, dos crimes contra a ordem tributária, e da lavagem de dinheiro); criam-se novos instrumentos de fiscalização, controle e limitação da administração pública, como por exemplo, a lei de responsabilidade fiscal; enfim, cerca-se a administração pública de inúmeros controles legais e populares e, mesmo assim, com tudo isso, o que vemos e constatamos: CORRUPÇÃO!

Tributos arrecadados com afinco do cidadão, que em sua ingenuidade esperava um mínimo de retorno social, acabam desviados, apropriados ou “perdidos” no extremamente complicado sistema da burocracia.

Toda essa verba pública perdida foi originariamente arrecadada da sociedade, por meio de impostos, taxas ou contribuição de melhorias, e para ela dificilmente retornará como benefício social, enquanto no exercício da função pública faltar um simples elemento subjetivo: ÉTICA.

Atuando em investigações de denúncias de corrupção ou deflagrando ações de improbidade administrativa, chega-se facilmente à conclusão de que falta, acima de tudo, muita ética no exercício da função pública.

O presente trabalho, longe de tentar esgotar o tema, tem por objetivo fazer uma análise da importância social do tributo e da ética no exercício da função pública, com algumas propostas concretas de atuação preventiva do Ministério Público Brasileiro, como meta de justiça social e garantia de dignidade da pessoa humana diante daqueles que, ironicamente, são os maiores agressores de direitos e causadores de prejuízos públicos: o Estado e o agente público ímprobo.

II – A IMPORTÂNCIA SOCIAL DO TRIBUTO

Consoante ensinamentos de Hugo de Brito Machado ,

“no estágio atual das finanças públicas, dificilmente um tributo é utilizado apenas como instrumento de arrecadação. Pode ser a arrecadação o seu principal objetivo, mas não o único. Por outro lado, segundo lição prevalente na doutrina, também o tributo é utilizado como fonte de recursos destinados ao custeio de atividades que, em princípio, não são próprias do Estado, mas este as desenvolve, por intermédio de entidades específicas, no mais das vezes com a forma de autarquia. É o caso, por exemplo, da previdência social, do sistema financeiro de habitação, da organização sindical, do programa de integração social, dentre outros”.

Toda essa atividade de arrecadação do Estado, que se perfaz por meio dos tributos, tem por objetivo, além de sua manutenção, a garantia de implantação e custeio de políticas sociais, com benefício direto à população marginalizada ou excluída, visando diminuir o abismo social existente.

A Constituição da República determina em seu primeiro artigo exatamente quais são os fundamentos da República Federativa do Brasil, formada pela União, Estados, Municípios e Distrito Federal, como Estado Democrático de Direito: a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; o pluralismo político.

Como se isso não bastasse, a Constituição da República fixa no seu artigo terceiro os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

E a própria Constituição da República coloca os instrumentos e as formas de serem concretizadas esses objetivos e fundamentos, por meio de políticas públicas, dedicando um capítulo inteiro nesse sentido, quando trata da Ordem Social, tendo como objetivo o bem-estar e a justiça sociais (artigo 193).

Essas políticas públicas são disposições acerca da seguridade social, da saúde, da previdência social, da assistência social, da educação, do meio ambiente, da família, da criança e do adolescente, do idoso e dos índios.

Assim, as políticas públicas sociais, expressamente previstas na Constituição da República, como finalidade, objetivo e, por que não dizer, dever do Estado para com a sociedade, são custeadas pela arrecadação dos tributos, que contribuem para a melhor (re)distribuição da renda e realização da justiça social.

Nesse último ponto, no que tange à (re)distribuição da renda, os princípios da capacidade contributiva, pessoalidade e progressividade dos impostos (artigo 145, §1º, da Constituição da República), permitem uma efetiva redução das desigualdades econômicas e sociais, uma vez que a cobrança progressiva do tributo é maior para os que detém mais renda, e menor para os de baixa renda, fazendo com que essa diferença seja revertida em atividades públicas essenciais destinados aos menos favorecidos, concretizando uma justiça fiscal em todos os seus termos.

Mesmo assim, apesar de todas essas garantias e instrumentos constitucionais, verificamos diuturnamente uma carência de efetiva aplicação de recursos públicos nas áreas sociais.

Constata-se com frequência em nosso país a cobrança excessiva de tributos sem o adequado retorno social. Nos países desenvolvidos a carga tributária apresenta-se elevada da mesma forma, mas a diferença marcante consiste no fato de que os cidadãos possuem um retorno social maior pelos impostos que pagam ao Estado.

Os índices de pobreza e indigência em nosso país são cada vez mais alarmantes, para uma nação que se coloca em pleno desenvolvimento, com índices de riqueza e potencialidades econômicas superiores a qualquer um dos sete países mais ricos do mundo.

A distribuição de renda e riqueza no Brasil é uma das piores do planeta: somos o quarto país do mundo com pior distribuição de renda, ficando atrás apenas da Suazilândia, da Nicarágua e da África do Sul. Enquanto os 10% mais pobres têm acesso a apenas 1% da renda gerada no país, os 10% mais ricos auferem 46,7% da renda total. Segundo economistas e estudiosos desse tema, a erradicação da pobreza no país não se dará apenas a partir da transferência de renda para os mais pobres, mas sim pela expansão das políticas sociais de educação, saúde, habitação e saneamento básico (necessidades básicas de qualquer ser humano), já que a pobreza não representa apenas uma insuficiência de renda, mas também a falta de acesso a diversos serviços .

Infelizmente, somente depois de muitos desvios de verbas públicas, corrupção incessante, malbaratamento do erário, comprometendo decisivamente a destinação social de todo o montante arrecadado por meio dos tributos, foi editada a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 04/05/2000), impondo limites de gastos, obrigações do administrador para com a sociedade e instrumentos eficientes de publicidade, fiscalização e execução orçamentária.

Trata-se de um verdadeiro código de ética para uma gestão fiscal responsável no País, determinando ao administrador público uma gestão por meio de planejamento de metas, disciplinando especificamente como deve ser elaborado o plano plurianual, a lei de diretrizes orçamentárias, a lei orçamentária anual, bem como a execução e o cumprimento das metas e políticas sociais previstas.

Aspecto extremamente positivo da Lei de Responsabilidade Fiscal é a obrigação de os administradores públicos em arrecadar os impostos de sua competência (artigo 11, LRF), pois a receita pública passa a ter uma valorização singular devendo-se tomar todas as providências para a arrecadação de impostos, objetivando maiores investimentos em melhorias sociais e na realização das políticas públicas essenciais.

Na prática, verifica-se que a grande maioria dos Municípios não fiscaliza corretamente a arrecadação dos tributos, ou acaba se omitindo em prol de interesses particulares, notadamente em pequenas cidades, onde o tráfico de influência é endêmico, ou a renda é muito baixa, a ponto de atividades informais e clandestinas serem incentivadas, contribuindo para uma pequena arrecadação dos tributos e, conseqüentemente, reduzido investimento social para a população.

É claro que enquanto não modificam a realidade e a mentalidade sociais, as normas aprovadas não passam de “Leis de papel”, mas já servem como poderoso instrumento social de fiscalização e controle dos gastos públicos, para que os tributos arrecadados sejam efetivamente gastos em prol da sociedade.

Portanto, ao tratarmos da importância social do tributo, tratamos incondicionalmente da finalidade e da razão de ser/existência do Estado, ou seja, como realizador da justiça social, apaziguamento dos conflitos e melhoria na distribuição da renda.

Ocorre, porém, que o Estado e suas funções são comandados, realizados e efetivados por meio de representantes eleitos ou agentes públicos, sendo que alguns destes colocaram de lado  ou talvez sequer tenham conhecimento de sua existência  um pré-requisito básico e elementar no exercício de sua função: a ética.

III – A IMPORTÂNCIA DA ÉTICA NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO PÚBLICA: MORALIDADE E EFICIÊNCIA

De todos os princípios legais e constitucionais inerentes à administração pública, a moralidade e a eficiência são os que mais se aproximam da noção básica de ética que todo e qualquer agente público deve observar no exercício de um cargo ou função.

Ambos, princípios consagrados constitucionalmente, têm por objetivo a fixação de padrões de conduta no exercício dos cargos e funções públicas, bem como o modo de aplicação adequada dos recursos arrecadados, diante da supremacia do interesse público.

Moralidade e eficiência na administração pública, decorrem de um princípio maior e mais abrangente, que é a probidade administrativa, impondo deveres no exercício de funções públicas e no trato com o erário e o patrimônio público.

O dever de probidade relaciona-se com a fiel e isenta utilização dos bens e rendas públicas; com a proibição de recebimento de vantagens pessoais em razão de suas funções; proibição de enriquecimento ilícito pessoal na realização de contratos públicos; vinculação incondicional a procedimentos e disposições legais; impossibilidade de defender interesse contrário ao interesse público no exercício de sua competência; vedação de divulgação de propostas e condições de licitação em favor de particular.

Consoante ensinamento preciso de Wallace Paiva Martins Junior , a probidade atende “a honestidade de meios e fins empregados pela Administração Pública e seus agentes, sublinhando valores convergentes à idéia de boa administração, de cumprimento das regras da ética interna da Administração Pública”.

A improbidade administrativa, desta forma, significa violação aos princípios da administração pública (como a probidade, a moralidade e a eficiência), com ou sem prejuízos ao erário e/ou enriquecimento ilícito do agente ímprobo, submetendo-o às sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa (Lei Federal nº 8.429/92), consoante determinações do artigo 37, §4º, da Constituição da República.

Assim, não basta ao agente público agir dentro da legalidade, é preciso mais, agir com absoluta probidade, com ética no trato com o patrimônio público, com moralidade administrativa, com honestidade na prestação de serviços e atividades públicas, e eficiência, buscando resultados úteis na concretização dos objetivos maiores do Estado.

De acordo com princípio da moralidade, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello , “a Administração e seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos. Viola-los implicará violação ao próprio Direito, configurando ilicitude que sujeita a conduta viciada a invalidação, porquanto tal princípio assumiu foros de pauta jurídica, na conformidade do art. 37 da Constituição”.

Assim, o administrador público não fica totalmente livre para o exercício de suas funções públicas, sob o manto da “discricionariedade”, mas vinculado ao exercício ético de sua função, com honestidade, probidade, boa-fé e também eficiência na utilização de bens e rendas públicas.

Quanto a esse princípio, o da eficiência, considera-se um dos pontos mais importantes da atuação ética do agente público, relacionado não apenas com o exercício da função pública, mas também com a busca da melhor aplicação das rendas obtidas em benefício do Estado e da própria sociedade, também envolvendo a questão da importância social do tributo.

Tal princípio, elevado expressamente à categoria constitucional desde a Emenda nº19/98, mas ainda negligenciado por alguns administradores públicos, é um dos melhores instrumentos de preservação e fiscalização da ética administrativa, bem como da justa e perfeita aplicação dos tributos arrecadados.

Hely Lopes Meirelles , em sua obra clássica, tratava a eficiência como um dos deveres do administrador público, ensinando com propriedade que o “Dever de eficiência é o que se impõe a todo agente público de realizar suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros”. Nessa mesma linha, é o entendimento de Maria Sylvia Zanella Di Pietro , pois o princípio da eficiência “impõe ao agente público um modo de atuar que produza resultados favoráveis à consecução dos fins que cabem ao Estado alcançar”.

Ubirajara Costodio Filho , explica que é preciso atribuir ao texto constitucional o sentido que lhe garanta a maior força normativa, diante da indisponibilidade dos interesses públicos, enunciando o conteúdo jurídico do princípio da eficiência nos seguintes termos: “a Administração Pública deve atender o cidadão na exata medida da necessidade deste e com agilidade, mediante adequada organização interna e ótimo aproveitamento dos recursos disponíveis”.

Alexandre de Moraes , em estudo conciso acerca da reforma administrativa, ensina que “O princípio da eficiência vem reforçar a possibilidade de o Ministério Público, com base em sua função constitucional de zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promover as medidas necessárias, judicial e extrajudicialmente, a sua garantia (CF, art.129, II)”.

Indiscutivelmente, todo e qualquer cidadão que necessite e dependa dos serviços de relevância pública  saúde, educação, segurança e previdência  tem o direito (e o dever) de exigir dos agentes públicos serviços de qualidade, prestados com o menor dispêndio econômico e temporal, existindo inclusive disposição constitucional prevendo a regulamentação das formas de participação do usuário na administração pública, permitindo reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços, bem como a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública (artigo 37, §3º, da Constituição da República).

Porém, o desperdício dos recursos, bem como a oferta ineficiente de serviços, com péssima qualidade, obviamente afronta o interesse público, podendo inclusive gerar prejuízos ao erário.

Assim, o administrador público ineficiente incorrerá em atos de improbidade administrativa, principalmente quando se verifica que de sua inércia ou negligência, a administração pública sofre perda patrimonial, ou que o mesmo simplesmente não está prestando os serviços de maneira ágil e econômica para a administração, sem alcançar resultados práticos almejados em lei, ou delineados pela mesma, devendo o Ministério Público zelar pela fiscalização desse princípio, diante das determinações constitucionais .

Em estudo acerca da Improbidade Administrativa, Fábio Medina Osório explica que “também ímprobo o agente incompetente, aquele que, por culpa, viola comandos legais, causando lesão ao erário, demonstrando ineficiência intolerável no desempenho de suas funções”.

E diariamente temos exemplos de ineficiência perante a Administração Pública e a sociedade, gerando prejuízos: são administradores que, no desempenho de suas funções, gastam desnecessariamente recursos públicos, sem obter nenhum resultado prático ou útil à sociedade, ou até mesmo à própria administração, gerando despesas injustificadas ao erário.

É preciso lembrar das palavras de Marino Pazzaglini Filho quando afirma que

“se é natural que a conduta dos agentes públicos esteja permanentemente sob a fiscalização popular, esta, porém, quase sempre é insuficiente para corrigir as distorções patrocinadas por condutas que, sem acarretar qualquer dano ao Tesouro e sem ensejar a configuração do enriquecimento ilícito, ferem profundamente os princípios éticos e jurídicos que presidem a Administração Pública”.

Portanto, a moralidade, incondicionalmente associada à eficiência, como elementos constitutivos do dever de probidade na administração pública, são princípios que devem e precisam sempre estar presentes na vida ética do exercício de uma função pública, por terem como objetivo final a concretização dos fins do Estado, pela correta e eficiente aplicação social dos tributos arrecadados e melhoria na (re)distribuição da renda, preservando-se a integridade do patrimônio público, e servindo como medida de prevenção contra a improbidade administrativa.

IV – FORMAS DE ATUAÇÃO PREVENTIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO

A Constituição da República determina, no seu artigo 37, §4º, que os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível

A plena eficácia deste dispositivo constitucional ocorreu com a edição da Lei nº 8.137/90, ao definir os crimes contra a ordem tributária e econômica, bem como da Lei nº 8.429/92, mais conhecida como a Lei de Improbidade Administrativa que, além de dispor acerca dos casos de improbidade e suas sanções, determinou como objetivo fundamental o integral ressarcimento do dano (artigo 5º).

Mas isso, na prática, dificilmente ocorre.

A atuação repressiva do Ministério Público, por meio da propositura de ações penais, de improbidade administrativa e de bloqueio provisório patrimonial do agente ímprobo, dificilmente alcançará o integral ressarcimento dos danos: poderá chegar próximo a isso, mas nunca será integral.

E isso pelo simples fato de que um dano ao patrimônio público acarreta um dano social tão difuso e irreparável, que se torna praticamente impossível o retorno integral dos prejuízos causados. Sem contar com as diversas artimanhas do agente ímprobo para camuflar seu enriquecimento ilícito e o desvio de bens e rendas públicas.

Com relação à sonegação fiscal não é muito diferente, pois o aparato policial do Estado ainda não dispõe dos meios e recursos necessários para a correta e perfeita investigação. São raros os casos de condenação criminal por sonegação de tributos, até mesmo porque os autores desses crimes são literalmente agraciados pela lei .

A potencialidade lesiva da sonegação fiscal e da improbidade administrativa é infinitas vezes maior que a prática individual de um crime, posto que a ausência de corrupção faz com que o Estado tenha mais numerário para aplicar em políticas públicas sociais, como educação, saúde, segurança e habitação, contribuindo para uma grande redução da criminalidade individual.

E tudo isso, ainda, sem contar com a notória morosidade do aparelho judicial, desde há muito abarrotado de processos, sem condições ainda de conferir a devida importância e prioridade nos julgamentos dos crimes de sonegação fiscal e ações civis públicas por atos de improbidade administrativa.

Com base nesses problemas concretos, passo às propostas eminentemente pessoais, de algumas soluções práticas:

4.1 NOTIFICAÇÕES RECOMENDATÓRIAS

É preciso usar e abusar das notificações recomendatórias, que tem por fundamento legal o artigo 6º, da Lei Complementar 75/93 do Ministério Público da União, aplicável subsidiariamente ao Ministério Público dos Estados (artigo 80, da Lei 8.625/93), objetivando a melhoria dos serviços públicos, bem como o respeito aos interesses, direitos e bens cuja defesa lhe cabe promover, não existindo, portanto, qualquer vedação legal ou material para a sua utilização.

Conforme Luiza Cristina Fonseca Frischeisen , a notificação recomendatória é o “instrumento de atuação do Ministério Público que tem o objetivo de prevenir responsabilidades da Administração e informa-las, sobre eventuais deliberações do Ministério Público (como a instauração de Inquérito Civil Público ou propositura de Ação Civil Pública), nos mesmos moldes das notificações previstas no art. 867 do Código de Processo Civil”.

Um dos efeitos mais salutares da expedição da notificação recomendatória é a prevenção de situações prejudiciais aos interesses públicos, advertindo a Administração sobre suas responsabilidades, bem como a configuração do dolo do agente público pelo descumprimento das disposições legais inerentes à sua atuação e competência.

Outro efeito extremamente eficaz consiste na solução de problemas extrajudicialmente, ou seja, sem precisar contar com a atuação do Poder Judiciário, fazendo com que os resultados práticos sejam alcançados com maior rapidez.

A Notificação da Administração Pública para a correta observância dos princípios constitucionais inerentes a sua competência e atuação, bem como para intensificação do combate preventivo da sonegação fiscal, por meio da fiscalização da arrecadação tributária, inevitavelmente trariam resultados mais concretos e positivos, não apenas na atuação do membro do Ministério Público, mas principalmente para a sociedade.

4.2 FISCALIZAÇÃO INTENSA

O Promotor de Justiça precisa sair de seu gabinete, precisa enxergar horizontes que vão além da sala da Promotoria, do ambiente do Fórum, do auditório de audiências e do tribunal do júri.

Conhecer os problemas da comunidade que faz parte da Comarca onde atua, deve ser uma das primeiras providências do membro do Ministério Público, até mesmo como respaldo para cobrança de atitude das polícias civil e militar, dos conselhos de fiscalização social e dos poderes públicos.

Saber da realidade social faz com que o Promotor de Justiça valorize seu trabalho perante a sociedade, e seja valorizado por esta, conheça as prioridades sociais pelas quais terá que lutar com maior afinco, bem como lhe trará maior consciência sobre seu importante papel como agente de transformação e modificação comunitária, tanto na área cível como criminal.

Diante disso, conhecendo as carências da comunidade, será mais preciso o direcionamento do trabalho para fiscalização da administração pública, cobrança de aplicação dos tributos arrecadados e maiores investimentos nas áreas mais negligenciadas.

4.3 AUXÍLIO DO TRIBUNAL DE CONTAS

Um dos requisitos para ser aprovado no concurso público para o cargo de Promotor de Justiça é a formação no curso universitário de direito, ou seja, não são exigidos conhecimentos sobre administração, ciências contábeis e economia.

Muitas vezes na investigação de improbidades administrativas e sonegação fiscal, encontramos dificuldades para a constatação dos ilícitos perpetrados pelos agentes ímprobos, por falta de perícia técnica ou contábil.

O Tribunal de Contas, órgão constitucionalmente responsável pela fiscalização contábil das administrações públicas, precisa atuar de forma conjunta ou, pelo menos, fornecendo elementos e respaldo para uma atuação segura do membro do Ministério Público no combate à improbidade e sonegação fiscal.

Não poderia ser descartada, inclusive, uma atuação conjunta com a Secretaria de Estado da Fazenda e a Secretaria Municipal de Finanças, principalmente no que tange à prevenção da sonegação fiscal.

4.4 REALIZAÇÃO DE AUDIÊNCIAS PÚBLICAS

Imprescindível é a realização de audiências públicas, não somente com a comunidade, mas com os poderes públicos municipais (prefeitura e câmara), polícias civil e militar, professores da rede educacional, objetivando a esclarecimento das funções institucionais, debate de temas de interesse comunitário e social, bem como divulgação de informações para o pleno exercício da cidadania, como direitos e deveres perante a comunidade e o Estado, para melhor fiscalização popular.

Nessas audiências públicas é imperioso ressaltar sempre a importância da efetiva participação popular na fixação das políticas públicas, consoante determinações expressamente previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal e no Estatuto das cidades, a ser concretizada por meio do orçamento participativo, para melhor distribuição dos investimentos e rendas obtidas por meio do pagamento dos tributos.

4.5 FORMAÇÃO DE FISCAIS COMUNITÁRIOS

Proposta interessante a ser adotada como objetivo institucional do Ministério Público é a formação de “fiscais comunitários”. Trata-se de pessoas do segmento comunitário para quem o Promotor de Justiça passaria conhecimentos específicos acerca da cidadania e fiscalização dos Poderes Públicos, servindo de canal de transmissão e pulverização de conhecimentos entre a sociedade local, para melhor atuação institucional.

Com isso tanto a população como os membros do Ministério Público teriam vantagens concretas, pois a sociedade passaria a cobrar com mais afinco seus direitos sociais, repassando ao Promotor de Justiça denúncias efetivas de violações desses direitos, contribuindo para uma melhor e mais eficaz atuação.

Poder-se-ia começar pelos presidentes dos bairros do município, primeiro canal de acesso à comunidade, fazendo com eles uma espécie de treinamento sobre cidadania, direitos do consumidor, saúde pública, importância social da aplicação do tributo arrecadado, pagamento de seus impostos, educação, direitos dos idosos, das pessoas com deficiência, para que, de posse desse conhecimento, mesmo que superficial, eles sirvam de porta-vozes e como instrumentos de conscientização social.

O Promotor de Justiça, de certa forma, tem uma passagem rápida pela Comarca onde ele atua, posto que é natural da carreira as promoções e remoções para outras Promotorias.

Muitas vezes trabalhos de conscientização iniciam-se e, com a troca do Promotor de Justiça, tem-se uma quebra nessa continuidade, por motivos os mais alheios e pessoais, que não importam serem tratados aqui.

No entanto, é exatamente por essa razão, que poderiam ser formados os “fiscais comunitários”, pois os Promotores de Justiça estão em constante mobilidade dentro de sua carreira, mas as idéias de transformação social, de consciência sobre direitos e deveres permanecerão com a comunidade, independentemente da forma de atuação do próximo Promotor de Justiça que assumirá na Comarca, fazendo com que a própria população se torne fiscal permanente dos interesses da comunidade, levando rapidamente ao conhecimento do membro do Ministério Público denúncias acerca de violações desses interesses, contra quem quer que seja, para tomada de providências.


4.6 ESCLARECIMENTOS DOS DEVERES DO CIDADÃO

O Promotor de Justiça deve sempre repassar aos cidadãos de sua Comarca que estes não possuem apenas direitos ilimitados, mas sim deveres inadiáveis para com a comunidade, perante a família e com os poderes públicos.

É preciso conscientizar o cidadão que antes de fiscalizar a atuação da Prefeitura quanto à destinação dos tributos, o mesmo deve pagar corretamente seus impostos; deve cobrar a nota ou cupom fiscal da aquisição de produtos no comércio; deve valorizar as iniciativas públicas e participar das reuniões que tem por objetivo discutir a problemática de seu bairro e o orçamento participativo, conforme dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal e Estatuto das Cidades.

O membro do Ministério Público deve assumir o compromisso de esclarecer, de informar e, principalmente, de incentivar o exercício dos instrumentos legais de controle e fiscalização, por serem os maiores interessados nesse processo: usuários e beneficiários dos serviços públicos.

A população deve ter consciência de que uma efetiva cobrança dos poderes públicos, seja do prefeito municipal, seja dos vereadores, seja até mesmo dos presidentes de bairros  que servem como um canal direto de reivindicações da comunidade que representam  pode trazer uma série de melhorias para a vida social e coletiva, contribuindo para uma melhor aplicação dos recursos públicos e participação popular da gestão pública e fiscal, tornando-a responsável, com o concreto retorno social do tributo arrecadado.

Certamente, algumas dessas propostas de atuação do Ministério Público não são absolutamente inéditas, mas foram abordadas com o objetivo principal de ressaltar a importância do trabalho preventivo e conscientizado do Promotor de Justiça perante a sociedade que ele atua, sem qualquer tipo de exclusão do necessário e imprescindível trabalho repressivo.

V – CONSIDERAÇÕES FINAIS

A falta de um mínimo de ética (probidade) no exercício da função pública, em nossa opinião, é o mais grave de todos os problemas. E por um simples fato: a ética não se busca por meio de uma notificação recomendatória, muito menos pela propositura de uma ação civil pública.

É necessária muita conscientização social da comunidade, para energicamente fiscalizar os poderes públicos, pagar seus impostos corretamente, e escolher melhor seus representantes nas eleições, sob pena de jamais conseguirmos modificar o grave quadro de corrupção endêmica por que passa a administração pública nacional.

Os danos causados à sociedade pela sonegação fiscal e os atos de improbidade administrativa são muitas vezes irreversíveis diante da realidade por que passa a população carente, que necessita imediatamente de recursos e investimentos na área social. Mas a sua conscientização, em nosso pensamento, consiste num dos fatores decisivos para o sucesso do trabalho institucional do Ministério Público, seja preventivo ou repressivo.

A verdadeira justiça social e a dignidade da pessoa humana somente serão alcançadas com o combate incessante à sonegação fiscal e aos atos de improbidade administrativa. E cabe a nós, membros do Ministério Público Brasileiro, enquanto Promotores e Procuradores de Justiça, agirmos como verdadeiros guerreiros, cujo brasão deve ser a luta incessante contra tais práticas, até mesmo porque, como fiscais da Lei e agentes que atuam em defesa dos interesses coletivos, temos como missão constitucional não fechar os olhos a tais condutas criminosas, mas sim combatê-las, contra quem quer que seja.

Urge o tempo de, como verdadeiras águias, assumirmos o elevado compromisso de priorizarmos o combate preventivo da sonegação fiscal e da improbidade administrativa, contribuindo decisivamente para uma melhoria na (re)distribuição da renda, realização da justiça social e a garantia de dignidade da pessoa humana. Agir em contrário, significa ignorar a mudança histórica do papel do Ministério Público, deixando de lado toda a sociedade, que nos vêm como última trincheira de resistência nesta guerra social, contra a falta de ética no exercício da função pública e a ausência de retorno social dos tributos.

VIII – BIBLIOGRAFIA

ALMANAQUE ABRIL 2002 – BRASIL. São Paulo: Abril Editora, 2002.

COSTODIO Filho, Ubirajara. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política nº27. A Emenda Constitucional 19/98 e o princípio da eficiência na Administração Pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo, 10ª. ed., São Paulo: Atlas, 1999;

FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas Públicas: a responsabilidade do administrador e o Ministério Público. São Paulo: Max Limonad, 2000.

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 20ª edição. São Paulo: Malheiros, 2002.

MARTINS JR, Wallace Paiva. Probidade Administrativa. São Paulo: Saraiva, 2001.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro – 19ª Edição – São Paulo: Editora Malheiros, 1994.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo, 11ª. ed.: São Paulo, Malheiros, 1999;

MORAES, Alexandre de. Reforma Administrativa – Emenda Constitucional nº19/98 – Coleção Fundamentos Jurídicos – São Paulo: Atlas, 1999.

OSÓRIO, Fábio Medina. Improbidade Administrativa: observações sobre a Lei 8.429/92. 2ª ed. Porto Alegre: Síntese, 1998.



PAZZAGLINI FILHO, Marino; ROSA, Márcio Fernando Elias; FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Improbidade Administrativa: aspectos jurídicos da defesa do patrimônio público. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 1998.

Um comentário:

  1. Cabe razão ao brilhante artigo do Dr. Miguel.
    A corrupção é um mal que vem de cima e quebra o elo da confiança da própria sociedade.
    Hoje vivemos numa sociedade frágil baseada nos exemplos que vem de cima: um Estado patrimonialista,"propriedade" de alguns poucos que se servem dele.
    Cabe ao MP, em seu papel constitucional,juntamente com a sociedade e a imprensa continuar na luta por uma sociedade que dê origem a um "Estado Ético de Direito".
    Parabéns Dr. Miguel!

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